Violência doméstica em tempos de isolamento social
Pensar a relação entre gênero, patriarcado e
violência requer uma análise histórica, social e cultural; e a luta feminista exerce papel central nesse debate.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil |
Por Ester
Sabrine – Além dos Muros
13/04/2020
A expressão violência doméstica normalmente é empregada
como sinônimo de violência familiar ou de gênero, podendo ser sofrida tanto por
homens quanto por mulheres. Entretanto, a desigualdade entre gêneros, o sexismo
e o machismo estrutural, fruto da sociedade patriarcal em que vivemos, fazem com
que a violência doméstica seja sofrida majoritariamente por mulheres.
Os exemplos de violência contra a mulher no Brasil são
inúmeros, a taxa de feminicídio no país é a quinta maior do mundo, com uma
média de 4,8 assassinatos para cada 100 mil mulheres. Entretanto, os casos que
ganham destaque na mídia, normalmente por envolver pessoas famosas, como
jogadores de futebol, atores, cantores, etc., logo caem no esquecimento
público, devido à naturalização da violência contra a mulher, que é ressaltada
a cada vez que um homem não sofre a devida punição por crimes dessa natureza e
permanece conservando seu prestígio social.
O regime de dominação-exploração das mulheres pelos
homens, sustentado pelo patriarcado, não abrange apenas a família, mas
circunscreve as esferas sociais como um todo. Sentem-se donos de nossos corpos,
de nossa sexualidade, de nossas vontades, enfim, sentem-se no direito de
decidir por nós, até mesmo sobre questões reprodutivas. Em contrapartida, a
mulher é treinada para sentir culpa e é condicionada a ser cordial e gentil,
exercendo assim um papel de subordinação, no que a antropóloga Ruth Benedict
denomina por “civilização da culpa”.
A luta feminista é cada vez mais necessária e vem
exercendo um papel político e social de extrema importância na aniquilação de
paradigmas sexistas, na superação da desigualdade entre gêneros, aumento da
representatividade, conquista de direitos, justiça social, etc. Entretanto,
ainda temos um longo caminho a ser percorrido.
A repórter Giovanna Galvani noticiou na revista Carta Capital, no dia 29 de março, que a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres
havia anunciado um aumento de 17% no número de denúncias de violência
doméstica, registradas na Central de Atendimento à Mulher, fazendo um
comparativo do início com o fim do mês de março, período esse marcado pelas determinações
de afastamento social em diversos estados e municípios. Segundo a Defensoria
Pública do Estado do Rio de Janeiro, ocorreu um aumento de 50% nos casos de
violência doméstica no estado, já nos primeiros dias de isolamento social, por
conta da pandemia Covid-19.
O ocupante do cargo de presidente da República no Brasil,
Jair Messias Bolsonaro, famoso por declarações muito polêmicas e pouco cordiais
e sensatas, após ser indagado sobre o aumento dos casos de violência doméstica
no país, fez a seguinte declaração para um grupo de jornalistas: “Tem mulher
apanhando em casa. Por que isso? Em casa falta pão, todos brigam e ninguém tem
razão. Como é que acaba com isso? Tem que trabalhar, meu Deus do céu. É crime
trabalhar?”
A fala desse indivíduo é extremamente indecente,
grosseira e representa a misoginia que há tempos ele vem favorecendo, sem
tentativa de ocultação, já que se orgulha de seu raciocínio desagregado. A
absurda naturalização da violência, a desumana falta de empatia e o machismo
presente nessa fala são tão indignantes e repulsivos quanto o evidente
interesse econômico por trás de suas palavras.
Segundo a socióloga Heleieth Saffioti (2004), “trata-se
de violência como ruptura de qualquer forma de integridade da vítima:
integridade física, integridade psíquica, integridade sexual, integridade
moral. Observa-se que apenas a psíquica e a moral situam-se fora do palpável”.
Nesse período de isolamento social por conta da disseminação da COVID-19 a
situação de mulheres expostas à violência doméstica piorou significativamente,
já que agora elas se encontram obrigadas a conviver integralmente com seus
parceiros dentro de casa.
A questão não tem nada de simples, como supõe o presidente.
Pensar a relação entre gênero, patriarcado e violência requer uma análise
histórica sociocultural. Não podemos permitir que nenhuma espécie de opressão
continue. É importante que você, mulher, saiba que não está só. A união
feminina sempre foi contundente e ainda é, principalmente nesses momentos
conturbados que enfrentamos, tanto na esfera política quanto na social.
Em casos de emergência ligue para a polícia (190), se
você sofrer algum tipo de agressão doméstica pode denunciar e receber
orientações sobre os seus direitos e sobre a legislação vigente, ligando para o
número 180. A ligação pode ser feita de todo o Brasil, gratuitamente de
qualquer telefone fixo ou móvel, a plataforma encontra-se disponível 24 horas
por dia e mantém seu anonimato. Denuncie. Se necessário, passe esse período de
isolamento social com familiares ou amigos. Se você conhece alguma vítima, ou
tem casos de violência doméstica na família, você também pode denunciar na
Central de Atendimento à Mulher. Se abster da denúncia é ser conivente com o
crime.
Aos homens, é preciso a aquisição da consciência de que
não basta ser um simpatizante da causa feminista, deve-se enfrentar o machismo
na prática cotidiana. Há, sim, lugar para o homem na luta feminista, desde que
ele respeite o protagonismo feminino e o lugar de fala da mulher na mesma.
A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi, em sua obra Sejamos
todos feministas, além de discorrer sobre o machismo estrutural,
estereótipos e a necessidade da superação de paradigmas de gênero socialmente
construídos, também ressalta sua perspectiva, afirmando que “feminista é o
homem ou a mulher que diz: sim, existe um problema de gênero ainda hoje e temos
que resolvê-lo, temos que melhorar”.
Ressalto e reitero aqui as palavras de Ngozi, todos nós,
homens e mulheres, temos que melhorar.
Referências:
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas.
trad. Christina Baum. 1. ed. São Paulo: Companhia das letras, 2015.
SAFFIOTI,
Heleieth I.B. Gênero, patriarcado, violência. 1ed. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2004.
Artigo publicado originalmente no blog Além dos Muros.
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