A carta emocionante de uma juíza ao ex-presidente Lula
“Uma
pessoa que assumiu o projeto de acabar com a miséria tem o maior
sentimento do mundo: o amor pela humanidade”, disse Kenarik Boujikian.
Por Brasil de Fato
Por Brasil de Fato
22/03/2019
A
juíza aposentada Kenarik Boujikian, cofundadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), escreveu nesta quinta-feira (21) uma carta ao ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Na mensagem, ela se solidariza com Lula pelas injustiças sofridas no âmbito da operação Lava Jato e lamenta não poder ouvi-lo: "Sua palavra foi interditada, até nos momentos de maior dor. (…) Não há algo mais simbólico: calar o presidente".
Foto:KS/TJ-SP |
Ao citar ações recentes do governo Jair Bolsonaro (PSL),
a desembargadora aposentada desde 8 de março de 2019 afirma que "as razões
[da prisão de Lula] estão cada vez mais claras para população".
Nascida em uma comunidade de armênios na Síria,
Kenarik Boujikian chegou ao Brasil com 3 anos de idade e notabilizou-se como
juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), pautada pela defesa dos
direitos humanos.
A carta escrita para Lula chegou à Superintendência da
Polícia Federal (PF) em Curitiba (PR) nesta sexta-feira (22), um dia após
visita de 12 juízes e desembargadores à Vigília Lula Livre.
Confira o texto na íntegra:
"Caro
Presidente Lula,
Bom
dia!
Minha
carta não chegará a tempo de ser entregue pelos amigos que estão em
Curitiba, nesta data. Fiz uma confusão em razão do fuso-horário
(estou muito longe, em Fiji). Mas, mesmo assim, resolvi escrever. Ocorre
que as palavras estão fugindo. Não consigo sintonizar a caneta na mão, com a
cabeça e o coração, que está partido e muito pressionado
com tantas injustiças pelas quais está passando e, por consequência,
também o povo brasileiro.
O
pior, para mim, que fui juíza por 30 anos (dia 08 de março foi meu primeiro dia
de aposentada como desembargadora do TJ-SP), é saber que muitas das injustiças
foram realizadas pelas mãos do Poder Judiciário. O objetivo de parte deste
sistema perverso foi alijá-lo da disputa eleitoral, fazendo uso deturpado dos
mecanismos legais.
As
razões estão cada vez mais claras para população. Basta ver
alguns exemplos do que estão fazendo com o país: o destino do pré
sal; o congelamento do orçamento; as propostas na área da educação; agora, a
base de Alcântara; a vexatória coluna abaixada de um presidente
brasileiro, para o presidente dos EUA; a proximidade geográfica com o maior
produtor de petróleo da América, a Venezuela; o ataque ao projeto da
Previdência Social para dar lugar à previdência privada; o projeto
'anticrime' de Moro, da maior mediocridade vista, pintada ridiculamente
como a salvação, o que constrange, pois é certo que o resultado seria o oposto,
como exemplos de nossa história recente demonstram; a assunção de cargo no
Executivo de seu julgador).
Mas, presidente
Lula, na verdade não queria escrever. Queria era ouvi-lo. É vergonhoso que
tenhamos um Judiciário que não lhe permite falar. Ao invés de lhe dar as
garantias, passa a subtrair seus direitos. Ao preso não existe a possibilidade
da sanção de ter a palavra cassada. Esta pena não se encontra no
ordenamento jurídico, mas isto não lhe foi assegurado, até o momento. Pelo
contrário, sua palavra foi interditada, até nos momentos de maior dor.
E a
imprensa, no que diz respeito à liberdade de expressão e comunicação, está
muda, de braços cruzados. Não há algo mais simbólico: calar o
presidente. Não deixar que seja visto como ser humano que é e que emociona
pela alegria que tem em construir um país mais justo e digno.
Caro
Presidente, estive em São Bernardo do Campo no dia anterior à sua
apresentação em Curitiba. Só o tinha visto uma única vez, na casa do amigo
João. Alguns não compreendem meu gesto. Naquele dia, eu fui para a reunião da
ABJD [Associação Brasileira de Juristas pela Democracia] e queria, de
algum modo, hipotecar minha solidariedade e registrar minha indignação com a
decisão do STF, que não poderia ter aquele resultado, numa análise das
declarações e decisões anteriores dos próprios ministros. Existem
pessoas que não entendem um simples gesto solidário.
Mas,
voltando, o povo já diz que a mudança da decisão foi proposital, e
concomitantemente temos um decréscimo significativo da confiança que a
população tem no sistema de justiça. O índice de confiança (ICJ), medido pela
Fundação Getúlio Vargas, mostra que está em decréscimo para o Judiciário e em
grau maior para o MPF. Acho que é forçoso reconhecer o descontentamento do povo
com nossas instituições.
Sou
uma pessoa que se move pelos sonhos e luto por eles. Espero, com todas as
minhas forças, que o STF retorne o seu papel de garante dos direitos
fundamentais e que o sentido de trânsito em julgado seja retomado, na decisão
definitiva, nos clássicos conceitos que sempre nortearam meus bancos
escolares e nos deles.
Presidente,
quero muito ouvi-lo e vê-lo, assim como milhões de brasileiros e brasileiras
que aqui o aguardam.
Registrei
a Vossa Excelência naquele dia de São Bernardo do Campo que a
injustiça é um dos piores sentimentos que uma pessoa pode passar, e isso tudo
está causando muita dor, mas devo dizer que gerou muita solidariedade e
reflexão. Há um sentimento que ultrapassará a injustiça. Creio que seja o amor
pelo outro.
Quando
Papa Francisco me perguntou como avaliava os últimos períodos do Brasil,
mencionei minha frustração com as questões indígenas e problemas ambientais.
Disse que o fantástico foi tirar milhões e milhões de pessoas da
linha da miséria, em um período curtíssimo de tempo, levando em conta que temos
mais de 500 anos de história.
Portanto,
podemos concretizar o projeto do Brasil, que está na Constituição. Podemos
apagar da história da humanidade a morte real, diária, pela fome, que está
acontecendo neste exato instante que eu escrevo. Já pensou? Ninguém mais vai
morrer de fome no Brasil e no mundo!
Presidente
Lula, você mostrou que isto é possível e nem precisa de tanto assim. As
pessoas não se sentiriam melhor em saber que não haverá crianças se
acabando até a morte por não ter o que comer?
Presidente,
faço parte de uma associação (Juízes para a Democracia) que foi criada
pós-88 e objetiva contribuir para tirar o projeto de país insculpido na
Constituição Federal para a realidade, para a vida. Vamos
continuar, sonhando juntos.
Uma
pessoa que assumiu o projeto de acabar com a miséria tem o maior
sentimento do mundo: o amor pela humanidade.
Deixei
no dia da vossa apresentação, lá em São Bernardo, a pequena pomba da paz, que
eu usava desde que estive com Papa Francisco, por ele abençoada. Sei que está
em melhores e mais adequadas mãos. Acho que, de algum modo, é símbolo de
proteção.
Presidente,
ainda que esteja há quase um ano na prisão, o senhor construirá a paz.
Estamos te aguardando. Até breve, e um forte abraço de conforto, carinho e
admiração.
Kenarik Boujikian, cofundadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, desembargadora
TJ-SP (aposentada).
Edição: Daniel Giovanaz
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