Kotscho sobre comunicação do governo Bolsonaro: "Encaram tudo como guerra"
Jornalista
vencedor do Prêmio Esso avalia que o presidente eleito em outubro do ano
passado não honra o cargo que ocupa.
Por Juca
Guimarães - Brasil de Fato
15/03/2019
Em menos de 100 dias de mandato, Jair Bolsonaro
(PSL) coleciona um histórico inédito de embates com jornalistas.
O presidente faz a maior parte de suas declarações públicas
pelas redes sociais, divulga dados de caráter duvidoso, favorece
meios de comunicação "parceiros" e dificulta o acesso a
informações públicas, como se estivesse rodeado de inimigos. Essa é a
avaliação do jornalista Ricardo Kotscho, ex-chefe da Secretaria de Imprensa e
Divulgação do governo Lula (PT) entre 2003 e 2004.
Kotscho foi chefe de Comunicação no governo Lula. Foto: Juliano Vieira |
"O governo não pode tudo. O presidente da República
não pode tudo. Ele [Bolsonaro] acha que pode, e está quebrando a cara”, analisa
Kotscho, que recebeu por quatro vezes o Prêmio Esso de Jornalismo – um
dos mais importantes da categoria no Brasil.
Com mais de 50 anos de profissão, o jornalista diz estar
impressionado com o despreparo, a arrogância e a postura presunçosa do
presidente. De acordo com Kotscho, o capitão reformado "encara tudo como
uma guerra".
Confira entrevista ao Brasil de Fato:
De
modo geral, como o senhor avalia a relação do governo Bolsonaro com a
imprensa?
Eles atacam alguns jornalistas, alguns veículos, e
escolhem alguns “amigos” com quem falam sempre. Desde que o Bolsonaro foi
eleito, tem canais televisão, como a Record, o SBT e a Bandeirantes, que abrem
câmera a hora que ele quiser. Ele fala o que quer, e só levantam a bola para
ele. Daí, o presidente se acostumou mal. Não é esse o papel do jornalista.
Ele tem os “inimigos”, que são os repórteres "de
verdade" – que, infelizmente, são uma minoria no Brasil. E tem
aqueles caras que convivem com o poder, qualquer que seja o poder: querem
estar bem na mesa do poder. Hoje [13 de março de 2019] teve um encontro do
Bolsonaro com jornalistas, um segundo encontro, mas são caras escolhidos a dedo
por ele. É só o pessoal em quem a equipe dele confia.
O
que a postura adotada em relação à imprensa diz sobre o próprio governo?
É a filosofia do governo [Bolsonaro]. O governo está permanentemente
em guerra. Tem os aliados e os inimigos – isso vale para tudo. O militar foi
preparado para a guerra, inclusive esse capitão que é presidente hoje. Você
olha para a cara, e ele está sempre acuado, sempre pronto para atirar. Tanto
que a campanha dele tinha a "arminha", e hoje a gente viu no que deu
o negócio da arminha [a entrevista foi realizada no dia do massacre de Suzano].
O decreto dele e do Moro para liberar quatro armas por
pessoa ainda nem foi aprovado, mas a Folha de São Paulo publicou
uma matéria mostrando que dá para comprar arma como quiser, com um curso
mequetrefe. Todo mundo que quer ter arma já tem, e agora eles vão liberar
mais.
Esta semana, Bolsonaro atacou uma repórter
do Estadão, estimulou um linchamento nas redes
sociais. E, na mesma postagem, atacou o pai dela. O pai dela é o
Chico Otávio, um dos grandes repórteres do Brasil, que já fez muitas matérias
sobre as milícias no Rio e que vive ameaçado.
Anteontem [11 de março], o Estadão fez um
editorial rompendo com o Bolsonaro, detonando o Bolsonaro, aí ele ficou bravo e
resolveu fazer esse negócio contra a repórter do Estadão – aproveitou
e pôs o pai no meio. É tudo nessa base. É um governo de vingança, de maldade,
não tem nada para construir.
Qual
a consequência disso a longo prazo?
Tudo que está sendo feito é para destruir os direitos que
as pessoas têm, todos os direitos sociais dos últimos anos. O Brasil deu
uma bela melhorada. Se pegar os oito anos do governo FHC e os oito anos do
Lula, foram 16 anos praticamente sem grandes crises, e o país cresceu muito no
campo social. Estou completando mais de 50 anos de jornalismo, e nós nunca
tivemos 16 anos tão bons para a maioria da população. Isso ninguém pode tirar,
mas esse governo está aí, não tem nem 100 dias, e está destruindo tudo.
Já começou com o Temer, com a reforma trabalhista, e
agora não vai sobrar nada com a reforma da Previdência. Querem vender tudo.
Parece que pegaram o programa de governo do Lula, os avanços do governo Lula, e
disseram: "Vamos acabar com isso aqui".
Como
você enxerga a postura do porta-voz do governo, o general Otávio Rêgo
Barros?
Eu não consigo entender onde acharam aquela figura. Ele
fala, fala e aí diz: "Agora, se alguém quiser fazer alguma
pergunta…". Aí, fazem duas ou três perguntas, ele encerra o
negócio, vira as costas e fala: "Paz e bem". Parece um
pastor! É uma mistura de general com pastor. Não dá para entender.
Os
problemas de comunicação que o senhor aponta já se verificavam na campanha
eleitoral?
Para você ter uma ideia, o Bolsonaro fez toda a campanha
sem um assessor de imprensa oficial. Quem era o assessor de imprensa? Antigamente, todos os candidatos tinham um assessor de imprensa. Você sabia com quem tinha que falar. Ele não tinha. Eram ele e os filhos dele lá. Aquilo se transportou para o governo.
Agora, ele se cercou de generais por todos os lados. Tem
mais militares hoje no governo do que eu peguei na ditadura militar. Nunca teve
tanto militar no governo, nem quando os generais-presidentes mandavam no
Brasil. Nunca teve.
O tratamento dado à imprensa na ditadura militar não era
tão terrível como o que está acontecendo agora, ou no
dia da posse. Foi uma coisa horrorosa. Deixaram sem comer e sem beber.
Nesse
sentido, o senhor considera que o governo tem manipulado
dados, escondido informações?
Vamos usar a palavra certa: mentir. Ele mente
diariamente. Há um levantamento que mostra que, em 60 dias de governo, ele
mentiu 82 vezes. Ele mente como o [Donald] Trump, igualzinho. Ele dá
informação errada… Essa história da menina do Estadão, por exemplo, ele
pegou e editou uma fala dela. Ele faz qualquer coisa como fez na campanha. O
governo até agora foi o prolongamento da
campanha, que foi a mais suja da história do Brasil.
O Sérgio Moro montou todo um esquema para tirar o Lula da
eleição e depois acertou para ser ministro. Isso já mostra o caos institucional
do país.
Tudo
isso estava previsto, ou governo Bolsonaro é pior do que se imaginava?
Vou dizer uma coisa, e posso falar porque eu vivi
isso: este é o pior momento do Brasil. Não só para a imprensa, para nós
jornalistas, mas para o país. Mesmo nos piores momentos da ditadura, você tinha
líderes de oposição muito fortes, tinha jornalistas de combate, inclusive
dentro da grande imprensa. A gente brigava, dentro da grande imprensa, para
dizer alguma coisa e passar por cima da censura. A gente não estava acomodado.
Nessa época, eu estava no Estadão e trabalhava
como se não existisse censura. A ordem do chefe de reportagem era essa:
"Você faz a sua matéria, o outro lá [censor] vem à noite e corta. Não
vamos nós cortar antes". Não tinha auto-censura. Não tem mais tantos
jornalistas com autonomia, combativos. Os jornalistas da nova geração,
principalmente de Brasília, são muito chegados no poder. É o que eu
chamo de "jornalismo do prato feito". Isso desde a Lava Jato.
Eles recebem vazamentos, fitas, documentos… é o prato
feito! Almoçam e jantam com o poder. Mas tem exceções, é bom lembrar que
tem exceções. E é só pegar a história do rapaz [Bolsonaro] para ver
que ia dar nisso. Aquele negócio de fazer arminha, de botar criança no colo e
fazer arminha…
A gente, como jornalista, precisa ser equilibrado. Eu
nunca acreditei nesse negócio de neutro, imparcial, isso aí não existe. Mas
eu sempre achei que tem que ter equilíbrio. Mesmo como assessor de imprensa,
nas campanhas do Lula, tinha colega nosso que cantava o jingle no
palanque. Eu não cantava porque estava trabalhando, como jornalista.
Eu sei separar as coisas, mas está chegando um ponto
em que não dá mais. Eu não tenho mais palavras, palavrões, para dizer o
que está acontecendo. É inacreditável. Os jovens não têm ideia da gravidade do
momento atual do Brasil. Não sei como vai acabar, mas não vai acabar bem.
Como
você analisa os indícios de envolvimento das milícias com o governo
federal e a morte da Marielle Franco, no Rio de Janeiro?
Eu escrevi no meu blog, o Balaio do Kotscho,
sobre o esquema político protegendo as milícias. No Rio, qualquer repórter principiante
sabe disso – quem são, como funciona, todo mundo sabe. O Chico Otávio já fez
quinhentas matérias sobre isso. O [ex-ministro de Segurança Pública Raul]
Jungmann, que fala, fala e não diz nada, mas deixou escapar [no final do
ano] que já tinham mais informações sobre este esquema. Tanto é que chamaram a
Polícia Federal para investigar a investigação da polícia carioca.
Ali é tudo mancomunado. A Polícia Militar, a
Polícia Civil, a Justiça, o Tribunal de Contas… O Sérgio Cabral não saiu do
nada. Os Bolsonaro sempre foram ligados às milícias. Eu publiquei um estudo feito pelo Instituto Análise, listando 21 fatos que ligam
o clã Bolsonaro às milícias. São fatos. Não é opinião, nem nada.
De
volta à comunicação, quais eram as diretrizes do relacionamento com a imprensa
quando o senhor estava na secretaria de comunicação?
Desde o início e em todos os sentidos, a gente procurou
democratizar a informação. Não dava furo [informação exclusiva] para ninguém,
não dava privilégio para ninguém. Podia ser um grande repórter da Globo ou um
da Rádio Itatiaia, não tinha diferença. Todos eram atendidos.
Na secretaria de imprensa, tinha os setoristas que
cobriam o Planalto – eram de 50 a 60 repórteres –, que ficavam lá direto.
Incluindo técnicos, o pessoal que organiza as coletivas, o som, eram umas 50
pessoas. E desde o início eu deixei isso claro: tratamento igual para
todos.
Eu trabalhava com a porta aberta e todo mundo podia
entrar na minha sala. Às vezes, o Lula estava lá conversando e o pessoal
entrava e falava com ele também. Era uma relação muito boa.
E
como o Lula tratava a questão do presidente como figura pública?
Lembro do preconceito que tinha contra o Lula, por ser
torneiro mecânico. O Lula sabia exatamente o papel dele como presidente. Ele se
dava ao respeito e respeitava todo mundo. Você não consegue se lembrar de um
episódio em que o Lula tenha desrespeitado o papel de presidente da República.
Ele tinha noção do papel dele. Esse rapaz [Bolsonaro] não sabe o que é Presidência
da República, Constituição. Ele não sabe nada. Ficou 30 anos na Câmara e
nunca fez nada.
Era uma figura folclórica. Ninguém prestava atenção
nele a não ser quando ameaçava bater em alguém ou falava aqueles absurdos. Os
jornalistas não sabiam? Não sabiam quem era essa figura? Por que saiu do
Exército?
É só pegar o prontuário dele. Por que saiu com 33 anos?
Por que é que foi preso? E [o problema] não é o fato de ter sido preso, porque
tem gente que é preso político. Ele [Bolsonaro] foi preso porque ameaçou jogar
bombas nos quartéis, na Cedae [Companhia Estadual de Águas e Esgoto do Rio
de Janeiro]. É um sujeito perigosíssimo, e entregam um país como o
Brasil na mão dele.
Edição: Daniel Giovanaz – Brasil de Fato
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