Estudantes indígenas relatam ofensas racistas por causa de pintura corporal
Além da discriminação e preconceito, alunos indígenas
da UFPA têm outros desafios, como a adaptação e permanência na universidade.
Por Moisés Sarraf – Agência Amazônia Real
Ocupar espaços
Para lidar com as dificuldades da língua, Bruna está em um dos programas de ensino tutorial ofertados desde o ano passado na UFPA. São programas de acompanhamento em Língua Portuguesa e Informática. “Desde o ano passado, temos monitoria nessas áreas em alguns institutos da UFPA.”
Por Moisés Sarraf – Agência Amazônia Real
25/08/2018
Belém
(PA)
– Na tarde do dia 4 de julho deste ano, três estudantes indígenas e uma
quilombola atravessavam o segundo portão do campus da Universidade Federal do
Pará (UFPA), em Belém. A presença dos três indígenas, cujos corpos continham
pinturas tradicionais, já não é incomum na universidade há alguns anos – de 34
etnias, são 185 matriculados na graduação, cinco na pós-graduação. A arte
corporal, porém, não deixou de incomodar: um dos seguranças chamou os três
indígenas para indagá-los sobre o porquê de eles usarem os grafismos. Em tom de
piada, chamou de “marmota”. Os estudantes tentaram argumentar, mas acabaram
desistindo.
A pintura no corpo faz parte da cultura indígena
e indica a etnia, mitologia e ritos. Foto: Bárbara Marreiros/UNE
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Cerca de duas semanas depois de a UFPA receber a visita
de Sônia Guajajara (PSOL), primeira indígena a compor uma chapa à Presidência
do Brasil, as piadas no portão da universidade foram um entre vários atos de
racismo sofridos dentro da instituição, segundo os próprios indígenas. Desta
vez, porém, o caso não ficou impune.
“Isso não é de agora. Foi só um episódio em que decidimos
não nos calar mais”, declarou Eliene Putira, presidente da Associação de
Estudantes Indígenas da UFPA (APYEUFPA).
“Na ocasião, o segurança perguntou: ‘que marmota é essa?’
Um dos indígenas, o rapaz, tentou explicar. O segurança começou a rir deles.
Disse que era palhaçada. E ainda interviu na fala do rapaz, dizendo que não
estava falando com ele”, relata Putira, que pertence ao povo Baré, da região do
Alto Rio Negro, no norte do Amazonas.
Diante da reação do segurança, diz Putira, os estudantes deixaram o campus, mas “quando chegaram em casa, decidiram falar. Foi quando o grupo decidiu que não precisávamos mais nos calar.” O caso, para Eliete Putira, que é biomédica e mestranda
da Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) na universidade, não é de preconceito
apenas, mas de racismo expresso. “Porque preconceito é desinformação. E esse
não é o caso”, avalia ela.
Em 2017, a UFPA realizou um curso de formação para todos
os seguranças da instituição – concursados e terceirizados. Na ocasião, foram
tratados de temas como machismo, homofobia e racismo. “A partir do momento em
que você sabe o que é racismo, o que aconteceu na entrada da UFPA é racismo,
não mais preconceito.”
Segundo pesquisa do Instituto Socioambiental
(ISA), a pintura no corpo indica a cultura de cada etnia indígena, a
mitologia do povo e ritos de pratica. O ISA é uma organização
não-governamental que atua junto aos povos indígenas da região do Alto Rio
Negro, no Amazonas. “Existem grafismos diferentes para proteção,
cerimônias de rito de passagem da adolescência para a vida adulta, ações dos
guerreiros, casamento, luto e cura de doenças, entre outros. As pinturas são
feitas com pigmentos: o vermelho do pó da semente de urucum, o
azul-escuro, da polpa do jenipapo verde, o pó de carvão para o
pigmento preto, calcário, que se encontra na terra, para obter a cor
branca”, diz o ISA.
Olhar
pela diversidade
Uma das ministrantes da Pós-Graduação em Antropologia, a
pesquisadora Zélia Amador de Deus, professora e coordenadora da Assessoria da
Diversidade e Inclusão Social (ADIS) da UFPA, diz que o curso será reeditado
este ano. E, além disso, a intenção agora é propor que os editais de
contratação de empresa de segurança já prevejam que os “trabalhadores estejam
aptos a trabalhar com a diversidade”, adianta Zélia Amador.
Para ela, que é uma das principais ativistas no combate
ao racismo na Amazônia, a experiência de raça no Brasil está vinculada à cor da
pele e ao cabelo crespo e, por isso, a sociedade “acaba esquecendo que os povos
indígenas foram os primeiros a serem vítimas no continente americano”. Um
racismo, diz a ativista, “muito mais cruel, que ficou naturalizado, que faz
parte das nossas relações e é muito mais difícil de perceber”.
Estudantes Bruna de Jesus, Eliene Putira, Eliniete de Jesus
e Antônio Marinho. Foto: Roberta Brandão/Amazônia Real
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Mas a presença indígena na universidade, além de garantir
acesso dessa população ao nível superior, também tem um caráter pedagógico,
avalia Zélia Amador. “É importante que estejam conosco. Precisamos aprender com
a convivência.”
Sobre o caso, a UFPA publicou nota em que “manifesta seu
repúdio ao ato de racismo contra discentes indígenas da instituição”. Ainda
segundo a universidade, o segurança foi afastado e o caso está sob apuração. A
nota, assinada pelo reitor Emmanuel Zagury Tourinho, diz que o ato está em
desacordo com a política institucional de respeito e valorização da
diversidade, além de se solidarizar com a comunidade indígena.
Racismo
institucional
A entrada de alunos indígenas na UFPA se tornou efetiva com a política de reserva de vagas instituída em 2009. “Resultado da luta dos povos indígenas com seus parceiros”, avalia Eliene Putira. Na UFPA, não há programa de cotas como noutras
universidades, mas sim reserva de vagas: cada curso de graduação tem duas vagas
reservadas exclusivamente a candidatos indígenas; caso não sejam preenchidas,
ninguém as ocupa.
Desde então, todo o chamado Processo Seletivo Especial
(PSE) é construído em parceria com a população indígena. Mas em 2014 não foi
assim e o edital foi alterado sem consulta aos principais interessados. A prova
de ingresso, até então composta pela escrita de redação e entrevista, passou a
ser composta por uma prova objetiva. “Resultado: entraram somente oito
indígenas”, reconta Putira. No ano seguinte, a prova retornou ao antigo formato
cuja participação é condicionada, ainda, à assinatura de três lideranças de
cada povo, com RG e CPF.
Na avaliação dos próprios indígenas, após o ingresso na
universidade, vem a parte mais difícil: a manutenção dos alunos nos cursos. Em
2010, não havia política para a permanência. No mesmo ano, a Fundação Nacional
do Índio (Funai) prestou assistência, “mas não era suficiente”, diz Putira.
O ponto de virada foi a criação da Associação de
Estudantes Indígenas da UFPA. A luta pela presença indígena na universidade
ganhou o reforço da bolsa permanência paga pelo Ministério da Educação (MEC) e,
no ano seguinte, o auxílio moradia concedido pela UFPA. “Mesmo não sendo
suficiente, ela é importante. Mas com os cortes do governo, a bolsa está
ameaçada.”
Evasão
de alunos
O acesso à universidade e a dificuldade na permanência
dos alunos indígenas dentro da universidade é uma relação que se repete na
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Realidade essa que
se materializa em um “número de evasão desastroso desses alunos no Ensino
Superior”, diz a pesquisadora Flávia Lisbôa, cuja pesquisa de doutorado, ainda
em curso, tem como título “Produção de Subjetividades de Graduandos Indígenas
na Unifesspa”, conduzida no programa de pós-graduação em Letras da UFPA.
“As especificidades de cada região, de cada povo, exigem
políticas específicas nas universidades, mas uma regularidade comum é que a
construção de políticas institucionais são claudicantes e descontínuas”, avalia
Lisbôa, que atua junto a indígenas do povo Gavião, no município de Marabá, sul
do Pará.
As entrevistas feitas por Lisbôa revelam que o
desmembramento que deu origem à Unifesspa – até 2013 fazia parte da UFPA –
levou a uma melhora na vida acadêmica desses estudantes. As demandas dos
indígenas passaram a ser melhor encaminhadas, explica ela, e as ações
institucionais demonstram a preocupação da universidade para abertura do
diálogo.
“Porém, há um caminho significativo a ser percorrido para a materialização disso em políticas, ações afirmativas, o que condiz com o pouco tempo de existência da instituição”, completa Lisbôa. Há uma diferença no perfil entre os estudantes indígenas
da UFPA e da Unifesspa. Segundo Lisbôa, na federal paraense, é comum “alunos
oriundos de outros estados e mesmo de outros municípios paraenses, mas que não
conseguem se deslocar com frequência para suas comunidades”.
Há alunos dos estados do Mato Grosso, Santa Catarina,
Amapá e Amazonas, por exemplo. Já na federal do sul e sudeste do Pará, diz ela,
“os alunos são em sua grande maioria da própria região, de aldeias de
municípios vizinhos, o que permite deslocamento diário entre a casa e a
universidade, mas ainda assim, cansativo, desgastante”.
Antônio Marinho é o primeiro
estudante indígena a
cursar jornalismo na UFPA. Foto: Roberta Brandão/AR |
Ocupar espaços
Ao entrar no curso de Jornalismo, Antônio Marinho, 21 anos, não sabia, mas em 41 anos da existência do curso na UFPA nunca houve um estudante indígena. “Pensei que já tinham passado vários por lá, mas não. Eu sou o primeiro”, contou o estudante da etnia Pira-Tapuya, do município de Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas. “Acho importante a gente ocupar todos os espaços possíveis.”
Depois do caso de racismo denunciado no último mês de
julho, ele e outros estudantes resolveram falar abertamente sobre o assunto.
“Emiti uma nova carteira de identidade e fui atualizar no CIAC [Centro de
Registro e Indicadores Acadêmicos, da UFPA].
A atendente verificou nossa origem
e perguntou, acho que com ironia, sobre de onde éramos”, conta Antônio, que
estava na companhia da namorada, também indígena. “Somos do Amazonas. E a atendente perguntou: o que vocês
vieram fazer aqui? O que estão fazendo aqui?”, prosseguiu Antônio, respondendo,
à ocasião, que estava ali para estudar.
“Aquilo foi um ato de racismo institucional. Ela discriminou
nossa origem de indígena do Amazonas”, afirma ele. “Viemos para estudar como
qualquer outra pessoa. Por que não podemos ocupar todos os lugares? É uma
universidade federal.”
Antônio estudou na única escola de ensino médio de Santa
Isabel do Rio Negro, município que fica na fronteira entre o Amazonas e a
Venezuela. “No início, teve aquela impressão ruim. Todo mundo ficou estranho
comigo, mas quando me apresentei como vindo do Amazonas, foi diferente. Os
professores me parabenizaram”, afirma Antônio, relembrando o primeiro dia de
aula em Belém.
“Meus colegas de curso têm esse respeito porque somos
diversos: têm negros, indígenas, jovens LGBT. E os professores catam as
dificuldades do aluno. Eles compreendem esse momento. São atentos a isso”,
conclui ele.
Turma
acolhedora
No decorrer de cinco anos, na Faculdade de Medicina,
Eliniete de Jesus Fidélis, 40 anos, diz que teve um cotidiano “menos pior” que
os colegas indígenas. Indígena das etnias Baniwa e Baré, Eliniete afirma que
“esse tipo de situação não aconteceu comigo”, se referindo à exclusão que
muitos indígenas vivem ao se deparar com as atividades do curso. “Fui muito bem
recebida pelos demais alunos. Minha turma de fato é muito acolhedora.”
Fora da sala de aula, ela teve de lidar com outro tipo de
dificuldade. Sem contato com Santa Isabel do Rio Negro, distante a 683
quilômetros Manaus, capital do Amazonas e 1.825 km de Belém em linha reta,
o cotidiano da capital paraense não foi bem assimilado.
“Em nenhum momento fui excluída. Sempre fui convidada. Às
vezes eu ia aos lugares com a turma, mas os assuntos eram diferentes. Foi minha
turma que me fez assistir ao cinema pela primeira vez”, conta Eliniete. Além
disso, alguns professores dificultaram a adaptação.
“Tenho professores que são meus amigos, mas alguns olham
com ar superioridade”, inicia a estudante. “Uma coisa que percebi: quando
um nerd tira boa nota, recebe parabéns; mas se eu tirar, eles se
admiram, perguntam como eu consegui fechar a prova.”
Ao ritmo de estudos, Eliniete responde que não é só
estudante de Medicina. “Sou estudante de Medicina, sou pertencente a um povo
que luta há 500 anos e a todo momento leva facadas”, diz ela. “Eu costumo
falar: enquanto vocês estão estudando, eu estou num evento, lutando.”
Para ela, a discriminação e o preconceito sempre são
sentidos em algum momento dentro da universidade. “Uma vez me perguntaram por
que eu não ia vestida de índia a uma festa a fantasia. Eu respondi: vá você,
isso pra mim não é fantasia. Aí me disseram que eu era nervosa. Talvez pelo meu
jeito de responder, as pessoas não falam essas coisas pra mim.”
“A protagonista de tudo isso é minha mãe, que tomou a
decisão de sair da aldeia para a cidade, onde pude estudar, mesmo sem casa para
morar”, relembra. “A gente passou fome algumas vezes, a gente não tinha
dinheiro. Em 1997, consegui concluir o ensino médio”, completa Eliniete.
Nesse entretempo, ela casou, fez o curso técnico em
2008 e se tornou agente comunitária de saúde. “Eu tinha vontade de estudar, mas
não iria morar em casa de família para acontecer o que acontece nesses casos”,
conta, se referindo às longas jornadas de trabalho e até estupros relatados por
mulheres que deixam o interior para trabalhar como empregada doméstica nas
cidades. Em 2012, porém, ficou sabendo do vestibular e, em 2013, ingressou no
curso de Medicina da UFPA.
Mãe
e filha no ensino superior
Da futura médica Eliniete à futura enfermeira Bruna de
Jesus Fidélis, de 19 anos. Mãe e filha são duas gerações dentro do ensino
superior. E uma constante: a dificuldade na adaptação. “Estranhei muito a
comida. É muito diferente. Aqui, o peixe não é o mesmo peixe, não tem caça”,
conta Bruna. “Não sou acostumada à carne de boi. Como no RU [Restaurante
Universitário] para não ficar com fome. Fui criada com carne silvestre, com
peixe.” Ela também reclama da violência urbana, já que, em Belém, ela se
“sentiu muito presa, com grades nas janelas, com medo de ser assaltada”.
Para lidar com as dificuldades da língua, Bruna está em um dos programas de ensino tutorial ofertados desde o ano passado na UFPA. São programas de acompanhamento em Língua Portuguesa e Informática. “Desde o ano passado, temos monitoria nessas áreas em alguns institutos da UFPA.”
A evasão desses alunos que, em 2010, chegou a ser de 50%,
agora diminui gradativamente. As bolsas e o Programa de Ensino Tutorial
contribuíram, avaliam os estudantes indígenas, e atualmente um ou dois alunos
desistem a cada ano.
Para lidar com as novas rotinas, os estudantes devem
dispor de atendimento psicológico, fruto da parceria entre a Associação dos
Estudantes Indígenas e a Faculdade de Psicologia da UFPA. “Como sabemos, já é
grande a questão da depressão na universidade e com nosso povo não é
diferente”, diz Eliene Putira. O serviço deve se iniciar no segundo semestre
deste ano.
A presença indígena na UFPA traz outras perspectivas.
Entre reuniões institucionais, a representatividade indígena é tema de debate.
“Eles [UFPA] promovem eventos sobre comunicação, cultura amazônica, mas sempre
com antropólogos, não tem presença de indígenas”, pontua Anderson. “Vocês falam
de cultura, troca de saberes, mas não convidam pessoas que vivem com essa
cultura. Isso não é legal. Só antropólogos falam, ao invés da experiência de
indígenas, ribeirinhos e quilombolas.”
Reportagem
publicada originalmente em 21 de agosto de 2018 no site da Agência Amazônia
Real.