Escravos do ouro: a dura realidade dos garimpeiros resgatados no Pará
Endividados e isolados, trabalhadores viviam sob rígido comando da
proprietária, que proibia até namoros e uso da internet.
Por Ana Aranha – Repórter Brasil
24/08/2018
O garimpo de Raimunda Oliveira Nunes desenvolveu um
eficiente sistema de produção. Mas o seu diferencial não está no modo como
extrai metal do solo, e sim na técnica para tirar o ouro dos seus funcionários.
Há 36 anos ela e sua família aprimoram o sistema na propriedade, ilegalmente
instalada dentro da Floresta Nacional do Amana, no município de Itaituba, oeste
do Pará.
Garimpeiros trabalhavam por meses e recebiam pouco ou nenhum ouro. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil |
Além de patroa, Raimunda também é o banco e o comércio do
local. Ela “guarda” o pagamento dos funcionários (entre 3 e 7% do ouro que
extraem) e usa esse crédito para descontar os gastos deles no garimpo. Todo o
controle é mantido por ela, em um famoso caderno que fica na sede e ninguém
acessa, apenas ela. A dívida só é revelada quando eles vão embora, momento em
que a patroa faz as contas. Os garimpeiros se referem com temor ao momento em
que ela “risca o caderno”.
Raimunda criou uma série de regras, atípicas até para os
garimpeiros mais rodados, que fazem os trabalhadores gastar o que ganham dentro
do seu garimpo. É proibido trazer comida de fora, compras apenas na sua
cantina. É proibido namorar, as relações são intermediadas pelo pagamento de
programas. É proibido usar a internet disponível na sede, obrigando quem quer
falar com a família a pagar o transporte até o local onde há um rádio. Tudo
isso vira dívida.
Na hora que ela risca o caderno, alguns devem tanto que
não têm saldo nem para sair do local. Era o caso de um trabalhador sentado na
beira da estrada que liga a sede à porteira quando o comboio de dez carros
entrou na propriedade, na quinta, dia 16. Foi quando os 38 homens e mulheres
que trabalhavam ali foram resgatados pelo grupo de fiscalização móvel do
Ministério do Trabalho. Os fiscais consideraram que os 30 garimpeiros e 8
cozinheiras viviam em situação análoga à de escravos.
Como o garimpo estava dentro da Floresta Nacional do
Amana, a ação foi em parceria com o Icmbio, o Instituto Chico Mendes de
Conservação para a Biodiversidade, que interditou as frentes de extração.
Participaram também o Ministério Público do Trabalho, a Defensoria Pública da
União, o Ministério Público Federal e a Polícia Militar.
Olhando para os lados e muitas vezes sussurrando para
falar com a equipe da Repórter
Brasil, os trabalhadores só revelaram o esquema ao qual eram submetidos
depois que foram retirados dali. Mesmo assim, com medo. “Prefiro viver”,
respondeu uma das mulheres quando questionada se o seu nome poderia ser
publicado. Respeitando a vontade da maioria, a identidade dos trabalhadores não
será revelada.
Muitos trabalhadores ficavam descalços no garimpo. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil |
“Um
grande comércio”
Entre as primeiras regras impostas pela proprietária,
estava a proibição do namoro. Os relacionamentos monetizados eram permitidos. O
valor do programa era anotado por ela no caderno de controle, onde o crédito
passava do garimpeiro para a cozinheira. Na hora de acertar as contas, Raimunda
cobrava primeiro o que o trabalhador devia a ela. Sobrando, as mulheres
recebiam pelos programas.
Havia casais que namoravam na clandestinidade. Se
descobertos, ou a mulher era expulsa, ou o casal era separado em frentes de
extração distantes.
Alguns trabalhadores relatam que era proibido trazer
comida ou bebida de fora, sob o risco de os produtos serem confiscados na
revista à qual foram submetidos na portaria. Regra que os obrigava a comprar da
venda que fica dentro da casa de Raimunda, onde tudo vale ouro.
Uma garrafa de cachaça sai por um grama, cerca de 100
reais. Um pacote com 12 latas de cerveja, dois gramas, 200 reais. Os preços na
cantina e na farmácia eram de cinco a dez vezes maiores que os da cidade,
segundo apuraram os fiscais do trabalho, que encontraram vários itens com a
validade vencida. A maioria dos trabalhadores, porém, nem sabia os valores. “A
gente pergunta o preço das coisas, ela dá de costas”, diz um garimpeiro.
Trabalhadores recebiam entre 3 e 7% do ouro, mas as circunstâncias faziam com que o valor fosse destinado a gastos no garimpo. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil |
Equipamentos de trabalho também eram vendidos por preços
altos. Segundo um trabalhador, as botas custavam 2,5 gramas (250 reais). Talvez
por isso a maioria deles trabalhava descalça, com as pernas enfiadas na lama,
onde muitas vezes cai o mercúrio utilizado para separar o ouro. Entre os
resgatados, um senhor tinha os pés e as pernas cobertos de machucados e
erupções.
A regra que mais gerava indignação era a proibição em
usar a internet ou o rádio na sede. Para falar com a família, eles precisavam
pagar quatro gramas (400 reais) para ir e voltar ao ponto onde Raimunda autorizava
o uso o rádio.
Uma das mulheres que têm experiência em outros garimpos
fez uma rica leitura de como Raimunda operava: “Ali todo mundo tem livre
arbítrio, ninguém é obrigado a nada. Mas a situação não te deixa outra opção”,
ela diz.
“É assim. Tu não é obrigada a pagar pra falar com a
família, mas a outra opção é andar 30 quilômetros embaixo do sol. Só de ida. Do
mesmo modo, ninguém te impõe a prostituição. Mas o gerente fica no teu ouvido
toda noite, insistindo. Ele pode te queimar, tu não pode perder a vaga, acaba
se submetendo. Mas a mulher é esperta, o cabra gosta, e ela começa a pedir pra
ele comprar um monte de coisa, como agrado. O garimpeiro vai pegando da cantina
sem nem saber a conta. Pra mim, tudo isso aí é um grande comércio”.
Medo
e respeito
Pior do que trabalhar e gastar tudo no garimpo, é
trabalhar e economizar, mas mesmo assim não receber. Foi a situação relatada
por um trabalhador que, quando quis sair, não conseguiu receber de Raimunda. No
dia do acerto das contas, ele ouviu da proprietária que não havia ouro para lhe
pagar. “Ela disse pra voltar pro trabalho, eu voltei”, ele diz.
Por que não contestou? Exigiu o seu pagamento? “Ninguém
tem essa força ali, dona”, ele responde, incomodado. “Acho que a senhora ainda
não sabe de metade da história. Quem é doido de mexer com uma diaba daquela?”.
Raimunda não é bem quista pelos funcionários. Nem mesmo
um dos seus empregados de confiança, que trabalha como operador de máquinas,
encontrou palavras boas para descrevê-la. Falando com ênfase positiva, como
quem faz um elogio, ele disse: “ela é uma mulher dura. Muito dura”.
Para um dos gerentes dos barracões, uma mistura de
respeito e medo impede os trabalhadores de “encarar a véia”. A Polícia Militar
encontrou quatro pistolas na propriedade. Segundo um trabalhador, o gerente
principal da fazenda, braço direito de Raimunda, andava com uma arma dentro do
seu carro. “Bem à vista”, diz.
Raimunda tem 59 anos e herdou o garimpo do marido,
Francisco Pereira Nunes, o Chicão. Conhecido na região por ter sido um patrão
ainda mais duro que ela, Chicão foi assassinado a tiros dentro do garimpo em
2010.
“O boato é que ele era ruim, que mandou enterrar muito
couro [corpos] lá dentro”, diz um antigo morador de Itaituba, que não quer se
identificar. Não há provas para as acusações, mas o boato se espalhou entre os
homens e mulheres do garimpo.
Raimunda mantém um retrato imponente de Chicão na entrada
da sede, pendurado entre a farmácia e a cantina. Na sala da casa, há retratos
dos filhos pendurados na parede. Em um deles, uma jovem exibe um diploma dentro
de uma moldura que imita a capa da revista Caras, em tamanho ampliado.
“Desde que ele morreu, eu assumi tudo aqui com os meus
filhos e meu genro”, diz Raimunda. Uma de suas filhas, que mora na sede da
cidade de Itaituba, é a responsável por encontrar os trabalhadores e
providenciar o transporte até o garimpo. Os equipamentos utilizados no local,
todos de propriedade da família, valiam mais de um milhão de reais, segundo
cálculo do Icmbio.
Raimunda confirma que retinha o pagamento dos
funcionários “para preservar eles e a gente. Se alguém rouba ouro, e o
garimpeiro tem guardado, vão dizer que foi ele”. Ela justifica ainda a
proibição do namoro como um jeito de garantir que a cozinheira não tenha
favoritos no barracão: “Dizem que, quando amiga [quando um casal se junta],
elas guardam pedaço de carne maior pro marido. Então faço isso para não ter
privilégio”.
Cozinheira lê a Bíblia no único ambiente com cama e fechado por paredes. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil |
A carne é um tópico sensível na propriedade. Raimunda diz que sua criação de gado e cabras é apenas para alimentar os garimpeiros. Nos barracões, porém, a reportagem não conversou com um homem ou mulher que não reclamasse da ausência de proteína animal nas refeições. Todos dizem que a carne enviada dura apenas dois dias. No resto da semana, o almoço e o jantar se limitam a arroz e feijão. Só come mais quem compra da cantina.
Raimunda diz que é injustiçada, que mata um boi por
semana para eles. Ao final da entrevista, sentada no sofá de sua casa, ela tira
os óculos e chora. “O bandido que tá na rua ninguém pega. A gente, que tá aqui
trabalhando, merecia mais consideração”, argumenta. “Estão me tratando que nem
bandido”, diz, em voz baixa, olhando para as viaturas e acampamento montado
pela operação na frente da sua casa.
A chegada dos trabalhadores de volta à cidade fez outra
pessoa chorar, mas de alívio. “Eu passei esses meses acordada à noite e
agoniada de dia, achei que tinham enterrado meu filho lá dentro”, disse a mãe
de um dos garimpeiros, feliz em ver o filho chegar em casa. Ele ficou mais de
seis meses sem dar notícia, pois não queria gastar os 400 reais de transporte
até o rádio. Ela repara que ele perdeu peso, e o faz prometer que vai no médico
passar por “todos os exames”.
Raimunda estica os olhos sobre sua propriedade; ao fundo, o retrato de Chicão, seu marido assassinado no garimpo. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil |
Punição
No riscado do caderno da operação, a conta de Raimunda
ficou alta. “Os auditores fiscais do trabalho apuraram um total de R$ 366.812
de verbas salariais e rescisórias devidas aos trabalhadores resgatados, a serem
pagos pela proprietária do garimpo”, afirma Maurício Krepsky Fagundes, chefe da
Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo.
A dívida da proprietária com seus funcionários chama a
atenção mesmo entre outros casos de trabalho escravo. O valor corresponde a
mais da metade do total das verbas recebidas pelos 324 trabalhadores resgatados
até agosto deste ano, segundo Fagundes. Ela ainda pode ser alvo de ações de
danos morais, que estão sendo avaliadas pelo Ministério Público do Trabalho.
Além do endividamento, outro elemento que caracterizou o
trabalho escravo foram as péssimas condições e os riscos aos quais os
garimpeiros estavam expostos. Vivendo em um barracão de lona e chão pisado, os
homens e mulheres dormiam a poucos metros do lugar de onde extraiam o ouro:
crateras de areia e lama cavadas no meio da floresta.
A reportagem viu uma cobra venenosa e pisadas de onça no caminho para o local. Nos poços cavados para cada barracão, de onde se retirava a água para o consumo, havia sapos mortos. Apesar de ser uma ameaça aos trabalhadores, a floresta
alta e a fauna local chamavam atenção pela sua riqueza. Ao redor do rastro
deixado pela onça, havia marcas de patas menores que sugerem a presença de
filhotes.
Pela destruição causada pelas dez frentes de garimpo, a
multa aplicada pelo Icmbio foi ainda maior: 4,8 milhões de reais. O órgão
interditou os equipamentos e embargou 224 hectares que ficavam dentro da
Floresta Nacional.
“Esse era um alvo importante, mas claro que apenas essa
ação seria muito pouco. O trabalho tem que ser contínuo”, afirma Diego
Rodrigues, analista ambiental e chefe do setor de proteção do órgão em
Itaituba. Estima-se que existam mais de 3 mil garimpos ilegais na região do rio
Tapajós, o setor é o segundo maior vetor de desmatamento na área, perdendo
apenas para a pecuária.
Raimunda e seus filhos têm outras terras, fora dali, onde
exploram ainda mais frentes de garimpo. Na hora de pagar os trabalhadores, na
sala da Justiça do Trabalho em Itaituba, ela pediu tempo para vender ativos e
acessar o valor. Boa cobradora, agora é ela quem tem uma alta dívida pendurada
com os trabalhadores e com o órgão ambiental.
Reportagem
publicada originalmente em 23 de agosto de 2018 no site da Repórter Brasil, sob
o título “Escravos do ouro”.