Mídia no Brasil: igrejas cristãs no topo da audiência
Pesquisa
mostra forte presença das igrejas nos veículos de comunicação de maior
audiência: um risco ao pluralismo e à diversidade no país.
Reprodução: MOM-Brasil |
Por Olívia
Bandeira* – Le Monde Diplomatique Brasil
30/06/2018
A utilização das mídias por igrejas no Brasil não é um
fenômeno novo, mas tem crescido e atingido novos patamares. Hoje, a mídia
religiosa não é composta apenas por veículos de nicho. Os conteúdos religiosos
circulam cada vez mais nos grandes meios de comunicação, seja naqueles que se
definem como religiosos, seja nos veículos de interesse geral.
Este é um dos resultados da pesquisa Monitoramento da Propriedade da Mídia (MOM Brasil), realizada em 2017 pelo Intervozes em
parceria com a Repórteres Sem Fronteiras. Entre os cinquenta veículos de maior
audiência no país – considerando os meios impressos, online, rádio e TV –, nove
são de propriedade de lideranças religiosas, todas cristãs, dominantes no Brasil.
Os destaques estão na radiodifusão: entre as onze redes
de TV de maior audiência, três são de propriedade de lideranças evangélicas
(Record TV, Record News e Gospel TV) e uma de liderança católica (Rede Vida).
Entre as doze redes de rádio, duas são evangélicas (Aleluia e Novo Tempo) e uma
católica (Rede Católica de Rádio).
Já entre os dez sites de maior audiência e os dezessete
veículos impressos pagos de maior tiragem, aparecem dois de propriedade de
lideranças religiosas: o portal R7 e o jornal diário Correio do Povo,
ambos do bispo evangélico Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de
Deus (Iurd). Esse número seria maior se considerássemos jornais impressos de
distribuição gratuita, que não entraram na pesquisa.
A Folha Universal, da Iurd, por exemplo, tem tiragem
de 1,8 milhão de exemplares, muito acima dos jornais diários de grande
circulação, como a Folha de S.Paulo (cerca de 300 mil exemplares/dia)
e das revistas semanais, como a Veja (cerca de 1,1 milhão de
exemplares).
Esse fato está associado a um contexto mais amplo, aquilo
que analistas vêm chamando de “modalidades de presença” do religioso na esfera
pública ou ainda de “diferentes formas de produção de públicos e de publicidade pelos atores religiosos por meio de variadas tecnologias/artefatos de visibilidade”.
Ao contrário de um “afastamento das coisas do mundo”,
como pregavam os protestantes na primeira metade do século XX, lideranças
religiosas e leigos imbuídos de uma “missão” têm ocupado cada vez mais espaços
diversos da sociedade, como a mídia, a indústria cultural, especialmente
através da indústria fonográfica, a política institucionalizada, além
de projetos em educação, saúde e assistência social.
Embora o número de igrejas que utilizam os meios de
comunicação seja grande, este texto se foca nos quatro grupos que se destacam
por terem alcançado o ranking dos cinquenta veículos de maior audiência no
país.
Igreja
Universal do Reino de Deus
O bispo Edir Macedo, sua esposa Ester Bezerra e outros
bispos da Iurd aparecem no MOM Brasil como proprietários
de cinco dos cinquenta veículos de maior audiência identificados pela pesquisa,
o mesmo número de veículos pertencentes à família Saad, do Grupo Bandeirantes.
Os dois grupos só perdem para o Grupo Globo, que possui nove veículos listados
na pesquisa.
Como mostra a tabela acima, quatro dos cinco veículos
ligados à Iurd fazem parte do Grupo Record. O quinto, a rádio Aleluia, é de
propriedade de bispos da igreja. Além desses, o Grupo Record e a Iurd possuem
outros veículos de menor audiência, também listados na tabela acima.
Edir Macedo fundou a Iurd em 1977, quando o
teleevangelismo norte-americano já havia se disseminado por aqui. Desde o
início dos anos 1980, o bispo alugava espaços em emissoras de rádio e TV para a
apresentação de seus próprios programas de evangelismo. Mas seu império de
comunicação começou a ser construído com a estratégia de comprar veículos de
comunicação já existentes e bem estruturados.
Essa forma de expansão tem paralelos com a estratégia
utilizada pelo bispo em sua igreja: no início, em vez de construir novos
templos, como é sua tendência atual, a Iurd preferiu alugar grandes teatros e
cinemas desativados para seus cultos.
Igreja
Renascer em Cristo
A Igreja Apostólica Renascer em Cristo foi fundada em
1986, em São Paulo, por Estevam e Sônia Hernandes, já plenamente inserida na
indústria cultural. O grande espaço litúrgico conferido à música, de diferentes
gêneros musicais (rock, reggae, rap, samba etc.), atraiu principalmente os
jovens, e, posteriormente, em associação com a Teologia da Prosperidade, passou
a atrair também empresários e profissionais liberais.
Foi a Renascer que popularizou o termo gospel no Brasil,
no início dos anos 1990, quando Estevam Hernandes e o empresário Antônio Carlos
Abbud fundaram a gravadora Gospel Records. A gravadora fechou as portas em
2010, no entanto, o ministério de louvor Renascer Praise, liderado pela Bispa
Sônia, ganhou ainda mais notoriedade ao fazer parte do cast da major Universal
Music.
Da mesma forma que Edir Macedo e a Iurd, a Renascer
começou sua atuação no setor de comunicações, em 1990, alugando espaços em
emissoras de rádio e TV. A primeira concessão veio em 1996, no governo de
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Apesar de não estar na lista das maiores igrejas
brasileiras em número de templos e de fiéis, os líderes da Renascer ganharam
visibilidade através da mídia, com destaque para a Rede Gospel de TV, que conta
hoje com 25 emissoras em seis estados brasileiros e no Distrito Federal,
atingindo 170 cidades e cerca de 46 milhões de telespectadores.
Emissoras
de rádio e TV da Igreja Católica
Dois veículos ligados à Igreja Católica aparecem na
pesquisa: a Rede Católica de Rádio (RCR) e a emissora de TV Rede Vida. Embora a
história da radiodifusão católica remonte aos anos 1940, ela se fortaleceu a
partir da união de diferentes emissoras de rádio, ainda em 1976, com a criação
da União de Radiodifusão Católica do Brasil (Unda-BR).
A união é ligada à Unda mundial, associação laica com
sede na Alemanha dotada de reconhecimento oficial pela Igreja Católica. Em
1994, algumas redes de rádio ligadas a Unda-BR fundaram a Rede Católica de
Rádio (RCR), passando a compartilhar programação e a aglutinar audiência.
A RCR é uma associação de sete redes de rádio que
produzem e distribuem conteúdos e programas para cerca de mil emissoras e geram
transmissão em cadeia para em torno de 430 rádios em todo o território
nacional. Diferentemente do sistema tradicional de afiliadas, a RCR não tem uma
única geradora que reproduz conteúdo para suas subsidiárias, mas compartilha
alguns programas entre sete sub-redes, listadas no infográfico abaixo, que têm
programação própria.
Com o processo de convergência tecnológica, em 2010, a
Unda-BR foi absorvida pela criação da Signis Brasil – Associação Católica de
Comunicação, subsidiária da Signis Bruxelas –, para englobar não apenas as
emissoras de rádio, mas todas as mídias católicas.
Já a Rede Vida é originária de uma concessão pública
obtida por um leigo católico, o jornalista e empresário das comunicações João
Monteiro de Barros Filho, em 1990, com apoio do então bispo de Botucatu (SP),
Dom Antônio Maria Mucciolo, e de Dom Luciano Mendes de Almeida, então arcebispo
de Mariana (MG). A gestão da emissora foi transferida para o Instituto
Brasileiro de Comunicação Cristã (Inbrac), fundado em 1992 por leigos católicos
e religiosos, especificamente para manter a Rede Vida. Sua gestão é formada por
conselhos compostos por religiosos e leigos.
Com cobertura em canal aberto VHF e UHF, TV por
assinatura e antenas parabólicas, a Rede Vida está presente, segundo o portal
da emissora, em todas as capitais brasileiras e nas quinhentas maiores cidades
do Brasil, alcançando mais de 1.500 municípios.
Igreja
Adventista do Sétimo Dia
A Igreja Adventista do Sétimo Dia é a sexta maior
denominação evangélica do Brasil em número de fiéis (1,53 milhão de fiéis),
atrás da Assembleia de Deus (12,3 milhões), da Batista (3,7 milhões), da
Congregação Cristã do Brasil (2,2 milhões), da Iurd (1,87 milhão) e da Igreja
do Evangelho Quadrangular (1,8 milhão). Foi fundada nos Estados Unidos em 1863
e, em 1896, chegou ao Brasil, estando presente hoje em 206 países.
Desde 1943 alugando horários de programação em emissoras
comerciais, a Adventista conseguiu as concessões dos seus próprios veículos de
comunicação em 1989, ainda no governo de José Sarney (PMDB, 1985-1990). Entre
os cinquenta veículos de maior audiência, está a Rádio Novo Tempo, que começou
a transmitir em rede em 1999 e é formada por dezoito emissoras em dez estados
do Brasil, atingindo 893 cidades, além de outros países na América do Sul.
A programação musical se beneficia de outra atividade da
Igreja Adventista: a gravadora Novo Tempo. No entanto, da mesma forma que a
Renascer em Cristo, artistas ligados à Igreja Adventista também foram
contratados por gravadoras laicas, como a Sony Music e a Som Livre, e hoje
circulam também em outros veículos de mídia de grande audiência.
Seguindo a orientação da sede mundial e sua visão de
religiosidade e estilo de vida, a igreja possui também outros negócios em
mídia, como editoras, livrarias e a produção de games. Além disso, tem negócios
nas áreas de saúde (hospitais, plano de saúde, clínicas e SPAs), alimentação,
educação superior, finanças (seguradora e plano de previdência) e ação social.
Para
além da propriedade: a programação religiosa na mídia brasileira
Dos nove veículos de propriedade de lideranças religiosas
listados na pesquisa, cinco direcionam todo o seu conteúdo para a defesa dos
valores de sua religiosidade específica: as redes de rádio Aleluia, Novo Tempo
e RCR e as emissoras de TV da Rede Gospel e da Rede Vida. Isso não significa
que a grade de horários desses veículos seja formada exclusivamente por
programas definidos formalmente como religiosos, como transmissão de missas,
cultos e outras cerimônias.
Na realidade, há uma variedade de programas que, no seu
formato, se assemelham aos programas das redes laicas, como jornalismo,
atualidades, entretenimento e entrevistas, com o diferencial de serem
produzidos a partir de uma visão de mundo e de valores que esses grupos definem
como cristãos. O carro chefe da Rede Gospel, por exemplo, é o De Bem com a
Vida, programa no ar há mais de vinte anos. Apresentado pelas bispas Sônia e
Fernanda Hernandes, é uma revista eletrônica voltada para o público feminino
que trata de temas como saúde, culinária, beleza, família, artesanato e
educação dos filhos.
Os outros quatro que aparecem na pesquisa, a Record TV, a
Record News, o Portal R7 e o jornal Correio do Povo, todos do Grupo
Record, são veículos comerciais que têm uma programação que concorre com outros
veículos laicos de mídia. Classificar uma mídia como laica não significa dizer
que a religiosidade não esteja presente.
Estudo realizado pela Agência Nacional de Cinema
(Ancine), em 2016, mostra que a programação religiosa é o principal gênero
transmitido pelas redes de TV aberta do país, ocupando 21% do total de programação.
A campeã é a Rede TV!, que teve 43,41% do seu tempo destinado a programas
religiosos. Em seguida, vieram a Record TV, com 21,75%, a Band, com 16,4%, a TV
Brasil, com 1,66%, e a Globo, com 0,58%. Das seis redes comerciais de TV aberta
listadas na pesquisa, a única exceção é o SBT.
Os programas veiculados pela Rede TV!, pela Record TV e
pela Band são produzidos sobretudo por igrejas evangélicas de diferentes
denominações, neopentecostais, pentecostais e históricas. Há também missas
católicas e apenas um programa de outra religião, o Seicho-No-Ie. Importante
destacar que a Record TV exibe apenas programação da Iurd, durante as madrugas,
além de três programas religiosos produzidos pela própria emissora e
apresentados por bispos da Universal.
Enfatizando seu caráter comercial, na grade da emissora
há inclusive programas que contrariam a moral religiosa do grupo – hoje, por
exemplo, a Record TV tem reality shows como A Fazenda, e o portal R7 faz
cobertura especial de eventos como o Carnaval e tem um blog especializado em
cervejas. Por outro lado, a Iurd paga a outras emissoras, como a Rede TV! e a
Band, pela transmissão de seus programas fora do horário da madrugada.
Já a TV Brasil e a Rede Globo transmitem programas
religiosos de produção própria ou independente. A TV Brasil, apesar de ser uma
TV pública, exibe missa católica aos domingos. Além disso, exibe, também aos
domingos, os programas religiosos Retrato de Fé (único programa inter-religioso
identificado na pesquisa), Palavras de Vida e Reencontro.
A Rede Globo também exibe a Santa Missa católica, aos
domingos. É importante acrescentar que o Grupo Globo é dono da Som Livre, que
produz os álbuns dos padres cantores – campeões em vendas de discos no Brasil –
e de artistas evangélicos, pelo selo Você Adora, e produz festivais de música
gospel, como o Promessas.
A mídia impressa e os portais também apresentam conteúdo
religioso fixo. Para citar dois exemplos, o jornal Extra, do Grupo Globo, tem
entre seus colunistas o padre cantor Marcelo Rossi – que também tem um programa
na Rádio Globo AM/FM – e a pastora e artista evangélica Aline Barros.
Outro jornal impresso que tem um número significativo de
colunistas religiosos é O Tempo, do Grupo Editorial Editora Sempre/Grupo
SADA. Seu dono, Victorio Medioli, se define como budista e estudioso de
filosofias e religiões. Prefeito da cidade de Betim, pelo Partido Humanista da
Solidariedade (PHS), um partido cristão, fala constantemente sobre
religiosidade em suas colunas. Além disso, o jornal abre espaço para uma
variedade de lideranças cristãs católicas e evangélicas, além de lideranças do
espiritismo kardecista.
Monopólio
cristão, propriedade cruzada e arrendamento
As igrejas e lideranças religiosas cristãs não só estão
presentes como proprietárias nos veículos de maior audiência no Brasil, como
começam a formar seus próprios conglomerados de mídia, a partir da articulação
de diferentes tipos de veículos e da concentração da audiência (a chamada
propriedade horizontal dos meios de comunicação) e do investimento em outros
negócios em mídia (propriedade cruzada).
Além disso, elas se fazem presentes em outros veículos
comerciais de grande circulação, por meio da prática de arrendamento. O aluguel
de horário é uma das principais fontes de receitas das emissoras de TV, algumas
delas que passam por crise financeira, como informa o jornalista especializado em TV Flávio Ricco em relação à Band.
Embora muitas emissoras neguem a prática, o arrendamento
está sendo investigado pelo Ministério Público como prática ilegal. A venda de
horários de programação pelas emissoras de TV e de rádio para terceiros é
ilegal pois o concessionário deveria ser responsável pela programação (de
produção própria ou independente).
A propriedade horizontal e cruzada dos meios de
comunicação e o domínio das grades de programação são riscos ao pluralismo e à
diversidade de vozes e visões de mundo que circulam no espaço público e,
consequentemente, um risco à democracia. A mídia brasileira está atrelada a
interesses religiosos que se resumem ao cristianismo em suas vertentes católica
e evangélica.
Dentro do cristianismo, são privilegiadas apenas algumas
denominações evangélicas e correntes do catolicismo, em detrimento de outras
tendências existentes no mundo religioso brasileiro. As minorias religiosas do
país – como as religiões de matrizes africanas umbanda e candomblé – não têm
voz no sistema brasileiro de mídia de maior audiência e alcance.
*Olívia Bandeira é jornalista, doutora em
Antropologia e integrante do Intervozes
Texto
publicado em 16 de abril de 2018 no site do Le Monde Diplomatique Brasil