Revolta dos Malês, uma página ainda por ser lida na história brasileira
Livro detalha movimento de negros muçulmanos em Salvador, na madrugada de 25 de janeiro de 1835.
Foto: reprodução |
A
história das revoltas sociais no Brasil ainda é um terreno a ser explorado.
Nesse sentido, um livro lançado no final do ano passado traz luz a um episódio
pouco conhecido e que completará 189 anos no próximo dia 25. Ficou conhecido
como Revolta dos Malês, ocorrida no século 19 em Salvador. Malês eram os
escravos muçulmanos, que se rebelaram contra a segregação e a violência.
Assim,
para o professor e ativista Juarez Xavier a Revolta dos Malês foi o
“modelo ético/estético” de um tipo de brutalidade do Estado. Que passa por
Canudos (1896/7) e chega aos dias de hoje, como no massacre do Carandiru (1992)
ou na chacina de Jacarezinho (2021). A lógica é a mesma, afirma: “Cercar e
aniquilar a horda de desordeiros, pobres, pretos e abandonados”.
Xavier
assina o prefácio do livro Malês – A revolta dos escravizados na Bahia
e seu legado (Planeta, 336 páginas), escrito pelo jornalista paulista
(de Bauru) Gilvan Ribeiro, 59 anos, conhecido, entre outras obras, pelo
livro Casagrande e seus demônios, lançado em 2013. A “orelha” do
livro traz texto do sociólogo e professor Muniz Sodré.
Retrovisor
da história
O
Brasil de 1835 contava apenas 13 anos desde a proclamação da Independência. E
11 de sua primeira Constituição, imposta por Dom Pedro I, sem a abolição da
escravatura ou a emancipação das mulheres. Um período marcado por vários
levantes. E também, como assinala Xavier, o “temor das elites no retrovisor da
história”, com a recente revolta dos escravos no Haiti. No Brasil, dos séculos
16 a 19, teriam sido trazidos 4,8 milhões de crianças, mulheres e homens
escravizados. Ao mesmo tempo, indígenas eram sistematicamente dizimados.
“Desse
sistema circular que envolvia metrópole, colônia e continente africano,
derivaram três fenômenos que se estendem pelo eixo temporal do país: a
descartabilidade humana, o apartheid social e a subcidadania no porão da
sociedade”, assinala o prefaciador. Já o autor do livro lembra que a Revolta
dos Malês não é tratada como acontecimento isolado, “que acabou dizimado
sem deixar consequências, mas sim como um dos mais impactantes eventos de uma
marcha histórica que continua em curso”.
Cenário
devastador
Gilvan
detalha a procedência e as motivações dos revoltosos, que estimativas
consideradas por ele mais confiáveis seriam em torno de 600. Saíram às ruas, na
madrugada de 24 para 25 de janeiro de 1835 (no final do período sagrado do
Ramadã), com porretes, foices, facas, lanças, espadas, quase nenhuma arma de
fogo. Foram reprimidos sem piedade pelas forças policiais, alertadas por
delações – as informações vazaram (inclusive após uma briga de casal) e
precipitaram o movimento.
“O alvorecer revelaria um cenário devastador para o sonho de liberdade do malês. Quem percorresse o trajeto da Fonte do Xixi até o Quartel da Cavalaria iria se deparar com dezenove corpos de africanos, deixados no chão após o final do combate”, descreve o autor. “Sem contar os que sucumbiram no mar e desapareceram levados pelas águas.” O chefe da polícia contabilizaria 50 mortos, mas segundo Gilvan o número “seguramente” passou de 70. Um dos corpos foi, inclusive, enterrado sem cabeça, que foi parar na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Centenas foram sepultados em desacordo com as normas muçulmanos. E muitos também conseguiram escapar do cerco policial.
O jornalista e pesquisador dedica um capítulo à contribuição dos blocos afros de Salvador, que em seu trabalho mantêm a história viva. Blocos como o Malê Debalê, criado em 1979, o Olodum e o Ilê Ayê. Com a violência e o preconceito atingindo desde sempre a população negra, o debate segue contemporâneo.
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