Na Argentina, ninguém comemora golpe militar e ditadura
Enquanto
Bolsonaro quer ‘comemorações devidas’ no 31 de março, quando o golpe no Brasil
completa 55 anos, argentinos usam data similar para repudiar ditadura.
Por Olavo Barros – Ponte Jornalismo
Por Olavo Barros – Ponte Jornalismo
27/03/2019
“Eles matavam as mães”, diz uma jovem mulher a um menino
ao seu lado que, visivelmente instigado, pergunta sobre as razões de haver
milhares de manifestantes em marcha pela Avenida de Mayo, em Buenos Aires, em
direção à praça de mesmo nome. Este 24 de março talvez seja, para muitas das
crianças desta nova geração, o primeiro contato real com o que foi o último
golpe de Estado argentino, ocorrido há exatos 43 anos. A ruptura democrática de
1976 inaugurou uma sangrenta ditadura militar, que deixou 30 mil detidos desaparecidos
pelas mãos do Estado de exceção vigente.
24 de março é
dia de luta na Argentina: para lembrar os mortos e desaparecidos pelo regime
militar. Foto: Olavo Barros/Ponte Jornalismo
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A mensagem de quem foi às ruas da capital argentina no domingo (24/3) é clara: “Nunca Mais”. A marcha na Argentina aconteceu uma semana antes do 31 de março, dia em que o golpe militar no Brasil completa 55 anos. Mas diferente do país vizinho, por aqui, ano após o ano, a ditadura é comemorada com festa e tem levado cada vez mais pessoas para as ruas.
No ano passado, por exemplo, a data, que caiu em um
sábado no meio da Páscoa, atraiu centenas na avenida Paulista pedindo
intervenção militar. É comum chamarem o golpe de 1964 de revolução, bem
como negar as atrocidades cometidas nos porões da ditadura brasileira, como já
fez, mais de uma vez, o presidente Jair Bolsonaro (PSL). Em um vídeo de 2016, Bolsonaro, que era deputado federal, solta rojões em frente ao prédio
do Ministério da Defesa com uma faixa parabenizando os militares por não
deixarem o país virar Cuba e diz: “Hoje é o dia da segunda independência do
Brasil”. No ano passado, ele também fez comemorações.
Nesta segunda-feira (25/3), Bolsonaro determinou que o Ministério da Defesa faça “as
comemorações devidas” pela data. O porta-voz da presidência, Otávio Rêgo
Barros, destacou que o presidente não considera que houve um golpe militar em
1964. Na semana passada, o presidente do Chile, Sebastián Piñera, chegou a
chamar de “infelizes” algumas declarações de Bolsonaro, que em mais de uma oportunidade
já elogiou o ditador chileno Augusto Pinochet.
Uma das frases definida por Piñera como infeliz é: “Quem
procura osso é cachorro”. A expressão se refere à busca por desaparecidos na
época da ditadura e estampava cartaz pendurado na porta do gabinete de Bolsonaro
quando ele ainda era deputado. Para María del Carmen Verdú, integrante do
CORREPI (Coordenação Contra a Repressão Policial e Institucional), existe uma
desconsideração explícita sobre o que foi terrorismo de Estado e esse tipo de
mentalidade reforça discursos de atenuação do que foram as ditaduras na América
Latina.
E embora os hermanos,
de uma forma geral, tenham uma visão mais crítica com relação ao período
histórico, Verdú consegue ver similaridades entre os governos do Brasil e de
Maurício Macri. “Sempre assinalo que, na Argentina, inventamos o Macri antes
que vocês inventassem o Bolsonaro, mas que, juntos, eles se potencializam.
Destacamos a necessidade de se ter em conta o cenário continental, no qual são
evidentes os avanços da direita mais refratária, com o caso brasileiro na
dianteira”, aponta.
“Inclusive, [essa visão de negar os crimes da
ditadura] se aprofundou em episódios como sustentar que ‘não foram 30
mil’, a presença de destaque de genocidas em desfiles de dias pátrios e a
nomeação de funcionários como Pablo Noceti, defensor de repressores da
ditadura. Isso não só responde a ideologia reacionária de Cambiemos [coalização de centro-direita que surgiu em 2015 e que
elegeu Macri], mas também integra a operação para impor legitimidade à repressão
atual”, acrescenta Verdú.
Nunca
Mais: lembrar para que não esquecer
O dia 24 de março virou um dia de luta em 2005, na época
do governo de Néstor Kirchner, e entrou no calendário de feriados nacionais
como o Dia Nacional da Memória por Verdade e Justiça, muito em virtude do
empenho de organizações sociais ligadas aos Direitos Humanos. Entre elas, estão
os movimentos das Mães e das Avós da Praça de Mayo, grupos de senhoras que,
todas as semanas, reuniam-se na Praça de Mayo em frente à Casa Rosada (sede do
Poder Executivo argentino) para implorar ao Estado o direito de reencontrar ou
de, ao menos, enterrar seus(as) filhos(as) e netos(as) detidos e desaparecidos.
Além de ganhar projeção internacional, o movimento
tornou-se um dos principais símbolos de resistência na luta pelo fim da
ditadura e os lenços brancos com nomes das vítimas bordados à mão, os pañuelos, são até hoje um ícone
permanente ressignificado por outras causas populares.
Tamanha convulsão social gerou, diferentemente do caso da
Lei da Anistia brasileira – que poupou os responsáveis pelos crimes de lesa
humanidade cometidos durante a ditadura -, um julgamento histórico iniciado em
meados dos anos 2000 condenou à prisão militares envolvidos no massacre
promovido pelo Estado. Com muitos deles hoje em prisão domiciliar,
manifestantes também protestaram por penas mais severas a quem chamam de
“genocidas”.
A ressignificação de símbolos também passa pela Escola de
Mecânica de La Armada, um prédio
considerado o epicentro das torturas na ditadura argentina e que hoje se tornou
o Museo Sito de Memoria ESMA –
pode-se comparar ao Museu da Resistência em São Paulo, onde, na época do regime
militar, funcionou o Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro
de Operações de Defesa Interna).
“Foi nesse prédio de aproximadamente 5 mil metros
quadrados, o lugar onde se planejaram os sequestros, onde estiveram alojados
mais de 5 mil homens e mulheres, a maioria deles hoje desaparecidos. Nesse
lugar, se torturou; nasceram bebês de suas mães em cativeiro, que depois foram
separadas de suas mães e entregues a familiares dos repressores, isto é, se
levou adiante um plano sistemático de extermínio e por isso falamos que se
cometeram crimes de lesa humanidade”, explica Alejandra Naftal,
diretora-executiva do Museo Sito de
Memoria ESMA.
Para Alejandra, o processo de transformar o lugar e seu
símbolo advém de mais de 4 décadas de reflexão sobre o que se passou. “O
que tentamos é transformar um espaço que foi de horror, de tragédia, de
tormento e, paradoxalmente, hoje é de conhecimento, de expressão e também de
reflexão e liberdade. Todos os debates sobre o que fazer com os lugares e como
se transmite a memória são debates permanentes na sociedade. Hoje sabemos que
houve em toda Argentina mais de 600 lugares de detenção ilegal e as comunidades
próximas decidem o que cada uma delas quer fazer em cada lugar”, explica a
diretora-executiva.
“Os argentinos e as argentinas concluímos que não
queremos mais terrorismo de Estado, não queremos mais golpes militares, não
queremos mais repressão ilegal. Acredito que há um consenso de um valor, do
“Nunca Mais” a tudo isso, que estamos construindo entre todos”, conclui
Alejandra Najal.
A advogada Maria Del Cármen Verdú, integrante do
CORREPI (Coordenação contra a repressão policial e institucional), destaca a
potência da luta popular para alicerçar o dia 24 de março como uma data para
reafirmar os compromissos com a democracia. “A responsabilidade pela
sustentação da memória e a luta para que Nunca Mais não seja uma simples
expressão de desejos é uma tarefa que tem como protagonista o conjunto do povo
trabalhador. Nenhuma das conquistas que tivemos nestes 35 anos de luta, como a
anulação das leis de impunidade ou, mais recentemente, o freio à tentativa de
beneficiar genocidas, foram concessões de um ou outro governo, se não o
resultado da mobilização popular e da luta do povo”, pontuou.
Verdú sublinha que o período ditatorial chegou como uma
resposta das elites às lutas populares que pretendiam mudar o estado de coisas
e estabelecer justiça social.
“Neutralizado todo projeto de mudança nas relações
sociais existentes, havia chegado o momento de instrumentalizar a
‘institucionalidade’ por meio da transição ‘democrática’ que continuaria e
aprofundaria o modelo de dominação, sobre uma base de ‘paz social’, só que
conseguida à base de sangue e fogo. As políticas econômicas que a ditadura não
havia chegado a aprofundar seriam implementadas por governos constitucionais
apresentáveis, legitimados em sua origem eleitoral, sobre o terreno ermo
deixado pelo aniquilamento físico da resistência e o terror imposto ao conjunto
da sociedade. A repressão explícita da ditadura, uma vez cumprida sua função de
extermínio e de “limpeza contra-insurgente”, cedia lugar a métodos mais sutis
orientados ao controle social”, explicou.
Atualização
das lutas
Neste ano, além das bandeiras tradicionais de manutenção
de memória e busca por verdade e justiça, a presença de diversos movimentos
trabalhistas, sindicatos, organizações villeras
(villa é como são chamadas as
favelas na Argentina), coletivos de gênero e dissidentes, ligados às artes além
de muitas organizações sociais civis também deram contornos político-eleitorais
a suas manifestações.
Com a aproximação das eleições gerais, que ocorrem no
próximo mês de outubro, a possibilidade de renovar os representantes dos
Poderes Legislativo e Executivo e demonstrar nas urnas a solidez da democracia
argentina é uma preocupação visível entre aqueles que, hoje nas ruas, juram não
permitir que o que passou há 43 anos se repita.
Protestos contra a atual administração do presidente
Maurício Macri bem como críticas às suas políticas de segurança pública,
regidas pela Ministra de Estado Patricia Bullrich, se espalharam pelos
cartazes, performances, intervenções urbanas, gritos e palavras de ordem.
“Macri, seu lixo! Você é a ditadura!”, apenas para citar algumas delas.
Manifestantes lembraram também as vítimas de gatillo fácil – expressão para
letalidade policial -, denunciando que, mesmo em períodos ditos democráticos, a
população segue vítima da violência estatal.
Parentes de vítimas assassinadas pela polícia pedem justiça,
verdade e memória por seus familiares. Foto: Olavo Barros/Ponte Jornalismo
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Sobre isso, Maria Del Cármen Verdú lembra que nos
primeiros 1.059 dias de governo Macri, 1.303 pessoas foram assassinadas pelo
aparato repressivo estatal. “O governo da ‘Revolução da Alegria’ vem matando,
com gatillo fácil ou em lugares de
detenção, uma pessoa a cada 21 horas. Além disso, há presos políticos, como
Milagro Sala e Daniel Ruiz, encarcerado por ter participado da manifestação
contra a reforma da Previdência e são centenas de pessoas criminalizadas por
participar de protestos e mobilizações, como César Arakaki, Dimas Ponce e
Sebastián Romero”, denuncia.
Verdú manifesta preocupação porque o aparato repressivo
do presidente está muito alinhado com mudanças legislativas, impostas pelo Cambiemos. “Os códigos processuais
do país e da capital incorporaram formalmente as práticas que a justiça federal
já vinha implementando, como o uso da tecnologia avançada para acessar a
vigilância, perseguição e espionagem de pessoas e organizações através de
telefones celulares, tablets, computadores e qualquer outro tipo de dispositivo
eletrônico.
Consagraram também as figuras do infiltrado (agente
encoberto), do provocador (agente revelador), do dedo-duro (informante) e do
traidor (arrependido), todas de enorme periculosidade pela arbitrariedade que
implicam e pelo risco certeiro de fabricação de provas e de incriminações
falsas motivadas por dinheiro ou questões pessoais”, explica.
E critica a reforma do Código Penal em curso, que
pretende legitimar o gatillo fácil
com a ‘doutrina Chocobar’, que oficializa o emprego de armas de fogo por
policiais, autorizados a disparar em determinadas circunstâncias, além de
aumentar as penas dos delitos que servem para criminalizar pobres e baixar para
15 anos a idade a partir da qual meninos, meninas e adolescentes possam ser
penalmente responsabilizados e encarcerados.
Por volta das 16h do último dia 24 de março, já não era
possível acomodar mais manifestantes no espaço da Praça de Mayo e, ainda assim,
mais gente chegava a cada minuto, vindo das também ocupadas Diagonal Norte e
Sul e da Avenida de Mayo, inteiramente tomada, desde o Congresso da Nação. Se
antes era possível falar em milhares de pessoas, ao cair da tarde, já são
centenas de milhares em uma só voz: “Nunca mais!”.
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