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Existe “ideologia de gênero”?

A doutora em Educação Jimena Furlani, que desenvolveu extensa pesquisa sobre o assunto, explica os equívocos sobre o conceito.

Foto: Jimena Furlani/Reprodução

Por Andrea DiP – Agência Pública 
24/05/2018        
                                                                                                                    

O debate sobre a inclusão dos temas de gênero e sexualidade nos planos de educação (nacional, estaduais e municipais) foi um dos principais fatores de ascensão do Escola Sem Partido, como admite seu fundador Miguel Nagib: “A tentativa do MEC e de grupos ativistas de introduzir a chamada ‘ideologia de gênero’ nos planos nacional, estaduais e municipais de educação ‒ o que ocorreu, principalmente, no primeiro semestre de 2014 e ao longo de 2015 ‒ acabou despertando a atenção e a preocupação de muitos pais para aquilo que está sendo ensinado nas escolas em matéria de valores morais, sobretudo no campo da sexualidade”, disse o procurador em entrevista a Pública (a reportagem pode ser lida aqui).

Para quem não se lembra, a bancada evangélica, senadores, deputados estaduais e vereadores evangélicos, católicos e conservadores conseguiram, após campanha fervorosa, vetar o termo “gênero” do Plano Nacional de Educação (PNE) e, então, dos planos estaduais e municipais de educação de todo o país. Na época, era possível encontrar militantes pró-vida gritando “não ao gênero” diante de assembleias legislativas e pastores televisivos como Silas Malafaia, o deputado do PSC Marco Feliciano, o deputado do PP Jair Bolsonaro e o senador Magno Malta do PR bradando contra a “ideologia de gênero”, que traria a destruição da família e a doutrinação de crianças.

A CNBB, na época, também divulgou nota afirmando que a ideologia de gênero “desconstrói o conceito de família, que tem seu fundamento na união estável entre homem e mulher”. Nas missas e cultos, cartilhas foram distribuídas alertando pais e mães sobre o perigo silencioso que rondava suas casas – seus filhos seriam doutrinados a virar “outra coisa” que contrariasse seu sexo biológico. Mas o curioso é que “ideologia de gênero” não aparece nenhuma vez nos planos de educação ou nos estudos de gênero, e o termo nunca foi usado pelas ciências humanas.

O texto vetado colocava como meta “a superação de desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. Intrigada com isso, a professora doutora Jimena Furlani, da Universidade do Estado de Santa Catarina, que atua na formação de educadores e profissionais da saúde e segurança pública para as questões de gênero, sexualidade e direitos humanos, desenvolveu uma extensa pesquisa, que publicou em uma série de vídeos (que você pode ver aqui). Em entrevista à Pública, ela conta que se espantou ao de repente “acordar ideóloga de gênero e doutrinadora de crianças” e por isso começou essa investigação.

Leia a entrevista:

O que é “ideologia de gênero”, afinal? De onde ela surgiu?

A ideologia de gênero é um termo que apareceu nas discussões sobre os Planos de Educação, nos últimos dois anos*, e tem sido apresentado a nós como algo muito ruim, que visa destruir as famílias. Trata-se de uma narrativa criada no interior de uma parte conservadora da Igreja Católica e no movimento pró-vida e pró-família que, no Brasil, parece estar centralizado num site chamado Observatório Interamericano de Biopolítica. Em 2015 especialmente, algumas pessoas se empenharam em se posicionar contra a “ideologia de gênero”, divulgando vídeos em suas redes sociais: o senador pastor Magno Malta, o deputado Jair Bolsonaro, o deputado pastor Marco Feliciano, o pastor Silas Malafaia, a pastora Damares Alves, a pastora Marisa Lobo. Meus estudos mostraram que o termo é usado em 1998, em uma Conferência Episcopal da Igreja Católica realizada no Peru, cujo tema foi “A ideologia de gênero – seus perigos e alcances”. Parece que seus criadores se baseiam em dois livros para compor essa narrativa chamada “ideologia de gênero”: primeiro, no livro de Dale O’Leary intitulado Agenda de gênero, de 1996. O’Leary é uma militante pró-vida que participou das Conferências da ONU (do Cairo em 1994 e de Pequim em 1995) como delegada. Ela faz um relato dessas conferências, descreve, sob o seu ponto de vista, a ação das feministas em apresentar o conceito gênero e como, a partir dali, a ONU assume a chamada perspectiva de gênero para as políticas públicas sobre os direitos das mulheres. 

O outro referencial usado na construção dessa narrativa é o livro de Jorge Scala, cuja primeira edição é intitulada Ideologia de gênero: o gênero como ferramenta de poder, de 2010, que no Brasil, curiosamente, é intitulado Ideologia de gênero – o neototalitarismo e a morte da família, de 2015. O autor é um advogado argentino, conhecido defensor de causas antiaborto e contra os direitos das mulheres, membro do movimento pró-vida, que apresenta uma série de interpretações dos estudos de gênero, extremamente problemáticas e convenientemente articuladas para desqualificar tais estudos e apresentá-los como danosos para a sociedade. Portanto, parecem ser esses os principais referenciais usados na criação da narrativa chamada “ideologia de gênero”, que nos últimos dois anos vem sendo divulgados e exaustivamente repetidos em vídeos, textos, cartilhas, documentos da CNBB, palestras etc. Uma retórica que afirma haver uma conspiração mundial entre ONU, União Europeia, governos de esquerda, movimentos feminista e LGBT para “destruir a família”, mas que, em última análise, objetiva, sim, propagar um pânico social e voltar as pessoas contra aos estudos de gênero e contra todas as políticas públicas voltadas para as mulheres e a população LGBT, sobretudo nas questões relacionadas aos chamados novos direitos humanos, por exemplo, no uso do nome social, no direito à identidade de gênero, na livre orientação sexual.

E qual a diferença entre ideologia de gênero e estudos de gênero?

Primeiro, entender que todos nós seres humanos possuímos um sexo e um gênero. Enquanto o “sexo” é o conjunto dos nossos atributos biológicos, anatômicos, físicos e corporais que nos definem menino/homem ou menina/mulher, o gênero é tudo aquilo que a sociedade e a cultura esperam e projetam, em matéria de comportamento, oportunidades, capacidades etc. para o menino e para a menina. O conceito gênero só surgiu porque se tornou necessário mostrar que muitas das desigualdades às quais as mulheres eram e são submetidas, na vida social, são decorrentes da crença de que nossa biologia nos faz pessoas inferiores, incapazes e merecedoras de menos direitos. O conceito gênero buscou não negar o fato de que possuímos uma biologia, mas afirmar que ela não deve definir nosso destino social. Originalmente, as reflexões acerca da influência da sociedade e da cultura, no conjunto das definições que nos dizem o que é “ser homem” e o que é “ser mulher”, se iniciaram nas ciências sociais e humanas, como sociologia, história, filosofia e antropologia, mas, hoje, os estudos de gênero se constituem num campo multidisciplinar, composto por várias abordagens e presentes em todas as ciências – nas naturais, nas exatas, nas jurídicas, nas da saúde, nas da comunicação, do esporte etc. 

Hoje os estudos de gênero se aproximam também das discussões com outras identidades, como raça-etnia, classe social, religião, nacionalidade, condição física, orientação sexual etc., sendo, por isso, chamados de estudos de interseccionalidade. O conceito gênero permite, ainda, explicar os sujeitos LGBT, especialmente os sujeitos trans, na medida em que discutem, por exemplo, a identidade de gênero e o uso do nome social. Portanto, a perspectiva de gênero está na base dos novos direitos humanos e na justificativa das políticas de amparo às mulheres que repercute nas discussões acerca do conceito de vida e das leis sobre direitos sexuais e reprodutivos, e aborto e à população LGBT. Sem dúvida, se considerarmos que o conceito gênero permite as discussões acerca da posição da mulher na sociedade, da aceitação dos novos arranjos familiares, das novas conjugalidades nos relacionamentos afetivos, ampliação da forma de ver os sujeitos da pós-modernidade e no reconhecimento da chamada diversidade sexual e de gênero, então, não há campo do conhecimento contemporâneo mais impactante e perturbador para as instituições conservadoras e tradicionais que os efeitos reflexivos dos estudos de gênero. Isso nos faz entender porque o empenho tão enfático, persistente e até, em algumas situações, antiético das instituições que criaram e divulgaram essa narrativa denominada “ideologia de gênero”. 

Na minha opinião, há usos distintos da chamada “ideologia de gênero”. Parece que, no âmbito da cúpula da Igreja Católica, trata-se de uma questão dogmática e relacionada aos valores da ideologia judaico-cristã, que, segundo seus representantes, estariam sendo ameaçados pelo conceito gênero por causa das mudanças no comportamento das mulheres e nas leis sobre aborto, por exemplo, da aceitação das várias famílias e do reconhecimento dos direitos da população LGBT. Outro uso vem de representantes evangélicos: embora existam aqueles católicos que se aproveitam eleitoralmente dessa narrativa, usar a “ideologia de gênero” e sua suposta “ameaça” às crianças e à família tem sido mais presente em candidatos evangélicos – vide a chamada bancada cristã, que não apenas no Congresso Nacional, mas em todos os legislativos do país, deve aumentar, nas próximas eleições, à custa de campanhas cujo foco de “convencimento” deverá ser combater a ideologia de gênero.

E são os evangélicos que mais combatem a ideologia de gênero no Congresso…

Muitos pastores, em 2015, lançaram vídeos falando a respeito da ideologia de gênero, “explicando sua ameaça” às crianças e às famílias, com argumentos, visivelmente idênticos, em falas que não diferiam muito e confundiam e alarmavam mais do que explicavam o conceito gênero. Diziam coisas como: “Segundo a ideologia de gênero, você não vai mais poder dizer que é menina ou menino; a escola vai te doutrinar dessa forma. Tudo isso porque querem destruir sua família”. Dando continuidade à explicação, afirmavam: “Eles (os perversos ideólogos de gênero) querem negar nossa biologia”! Esse argumento da negação da biologia não é apenas absurdamente equivocado em relação aos estudos de gênero, mas constitui-se num ato deliberado de má-fé – uma desonestidade intelectual daqueles que criaram e divulgam a ideologia de gênero no Brasil. 

Os estudos de gênero não negam a biologia por um motivo muito simples: é preciso que ela exista para que possamos dizer que gênero é tudo o que não é biológico, ou seja, gênero difere da biologia, gênero é um conceito da sociedade e da cultura, gênero é, exatamente, o contrário. Não faz nenhum sentido dizer que os estudos de gênero negam a biologia; os estudos de gênero discordam é do determinismo biológico – quando a biologia é utilizada pra definir nosso destino social. Tenho que admitir que a construção dessa estratégia foi muito inteligente! Destaca-se o brilhantismo em construir uma narrativa, suficientemente ameaçadora para sociedade, na medida em que ela se volta para a criança e a família no seu intuito destruidor. Não há nada que mobilize mais as pessoas, principalmente pais e mães, do que alardear que “algo” ameaça suas crianças e que há um complô mundial para destruir sua família.

Se a ideologia de gênero foi um projeto do PT, quer dizer que, com a saída do PT do governo, ela não existe mais?

Palavras como gênero, identidade de gênero, orientação sexual e educação sexual foram excluídas dos planos nacional, estaduais e municipais de educação. O suposto pernicioso governo federal, o partido político e suas políticas de educação foram igualmente banidos do poder e do MEC. Para conter os revolucionários professores, especialmente aqueles que possuem sensibilização com o respeito às diferenças e discutem as formas de preconceito no cotidiano escolar, busca-se aprovar o projeto Escola Sem Partido – aliás, excelente aliado daqueles que criaram e divulgam a existência da ideologia de gênero. Se o governo do PT que criou a ideologia de gênero não está mais no poder, se tudo está sob controle e as políticas de educação do MEC, os livros didáticos e a formação de professores não mais conterão a perspectiva de gênero, então, por que é preciso manter vivo esse monstro? Por que pastores continuam dizendo em seus vídeos, missas, cultos que irão combater a ideologia de gênero? Primeiro, para manter a assustadora narrativa da ideologia de gênero. Segundo, para apresentar-se como paladino da justiça, como aquele que vai combater e defender as criancinhas e a família brasileira da ideologia de gênero. Terceiro, para assim pedir o voto e se eleger. Quarto, para, ao ser eleito, impedir ou fazer retroceder conquistas, nas leis, para mulheres, a população LGBT e o reconhecimento das religiões de matrizes africanas; e, quinto, para aprovar leis como o Estatuto da Família, alterar a Constituição Federal, instituir uma teocracia cristã no Brasil. Sim, estou bem pessimista. A ideologia de gênero se tornou um excelente cabo eleitoral, e não há nenhum interesse em mostrar para as famílias, pais e mães, que não há nenhuma ação concreta que busque a destruição da família e que ninguém na escola vai dizer que um menino não é menino ou que uma menina não é menina.

E tudo vem no mesmo pacote, né? O Estatuto da Família, a proibição da discussão de gênero. O Escola Sem Partido também vem junto nesse projeto?

Uma análise que podemos fazer é entender que o tempo presente reuniu, conforme a expressão de Michel Foucault, “condições de possibilidades históricas” para que esse movimento conservador tivesse tanta projeção no Brasil. O senhor Miguel Nagib cria o Escola Sem Partido no ano de 2004 e, praticamente por dez anos, não houve uma projeção nacional de seu movimento. Nos últimos anos, o descontentamento com o governo federal, somado à convergência de inúmeras críticas e análise conjunturais, em vários campos, como economia, política e educação, favoreceu o surgimento e a união de forças conservadoras e tradicionais contra as políticas de igualdade, respeito às diferenças, direitos humanos e políticas afirmativas. Penso que a questão é muito mais complexa do que parece. Poderíamos, inclusive, polarizá-la entre a discussão de distintos projetos de governo e de visões de mundo: de um lado, os de direita e, de outro lado, os de esquerda. Precisamos falar sobre isso!

O que significa, na prática, tirar a discussão de gênero dos documentos oficiais?

Nas discussões e aprovações dos Planos de Educação ficou evidente que combater a “ideologia de gênero” significava retirar de qualquer documento as palavras gênero, orientação sexual, diversidade sexual, nome social e educação sexual. Mesmo que as palavras, nas frases, não implicassem nenhuma ameaça objetiva, evitar que as palavras fossem visibilizadas na lei certamente dificultaria aqueles que pretendessem trabalhar esses temas na educação, e, sem muitos argumentos, as palavras foram excluídas. No entanto, é preciso lembrar que retirar essas palavras da lei não elimina os sujeitos da diversidade sexual e de gênero do interior da escola brasileira e de todas as sociedades humanas. Crianças e jovens, assim como professores, pais e mães, possuem suas identidades de gênero, são sujeitos de afetos e convivem num mundo diverso. Aliás, não é a existência do conceito de gênero que “fez surgir” na humanidade pessoas homossexuais, travestis, lésbicas, transgêneros, transexuais ou bissexuais, por exemplo. Os estudos de gênero existem para estudar esses sujeitos, compreender a expressão de suas identidades, propor conceitos e teorias para sua existência e ajudar a construir um mundo onde todos/as se respeitem. Da mesma forma, não foi a existência do conceito gênero que “transformou” as mulheres em contestadoras. A condição histórica e material, de subordinação e de sofrimento existencial, das mulheres, em todas as culturas, é que as impulsionou e impulsiona a lutar pelas mudanças sociais que lhes garantam uma cidadania mais plena. O conceito de gênero pode ser banido do planeta, que mesmo assim a humanidade continuará se expressando em sua diversidade e buscando direitos humanos para todos.

E nessa briga vale tudo, né? Inventar cartilhas falsas, falar que é contra “gênero” sem nem saber do que realmente se trata…

As cartilhas foram apócrifas e anônimas. Eu fiz um documento-análise e no primeiro eu disse que ninguém sabia quem era, não tinha data nem gráfica. No início deste ano, eu descobri em um vídeo do professor Felipe Nery que a cartilha foi elaborada no Observatório Interamericano de Biopolítica. Você não tem na história alguém que cria uma teoria e não assume essa teoria. E, pior, transfere essa teoria para os outros. Quando começou essa história de “ideologia de gênero”, eu acordei, de um dia para o outro, ideóloga de gênero, doutrinadora de crianças. Isso me motivou a iniciar pesquisas para entender de onde veio isso. Eu sempre falo que todo mundo já ouviu falar que os seres vivos se modificam ao longo do tempo num processo que se chama evolução e que transmitem isso aos mais aptos, e eu vou perguntar quem disse isso e as pessoas vão me responder Charles Darwin, e quem concorda com isso é chamado darwinista. Agora, a ideologia de gênero eles não assumiram que inventaram. A gente que tem que descobrir e contar para as pessoas que isso não existe nos estudos de gênero, que é uma interpretação propositalmente construída de forma negativa. As cartas não estão na mesa, eles não assumem que ninguém está doutrinando crianças na escola, que eles querem que não se fale de gênero na escola para que as crianças não acolham os sujeitos da diversidade, para que não aceitem que as pessoas possam ser vistas definitivamente sem preconceito. Que eles não aceitam os direitos humanos ampliados. Tem um vídeo que, ao mostrar um casal de transexuais, vem um comentário de que se trata de uma aberração humana, já que Deus criou o homem e a mulher. A gente conclui dele que eles são contra o conceito gênero porque Deus não criou travesti, transexual, transgênero, e, por isso, essas pessoas não merecem ter direitos.

E as pessoas são enganadas nessa confusão.

É claro que eles não acham que vão estar garantidos só com a confusão teórica que fazem. Eles condenam uma série de palavras que dizem fazer parte do pacote de ideologia de gênero para doutrinação das crianças e destruição das famílias. Eles condenam as palavras diversidade, homofobia, perspectiva de gênero, identidade de gênero, tudo que a gente tem utilizado para que as pessoas entendam a discussão dos direitos e da diversidade. E aí a pergunta é: “Qual é a proposta de acolhimento de vocês pra esses sujeitos, então? Ou querem fazer como aquele candidato à Presidência da República e mandar todo mundo para uma ilha?”. Eles querem que essas pessoas sumam, mas não assumem isso. O Escola Sem Partido ajuda a manter esse discurso de proibição da discussão e de segregação e, por isso, recebeu atenção.

*Entrevista publicada originalmente em 30 de agosto de 2016, pela Agência Pública.

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