Boris Fausto sobre o golpe de 64: “É impossível negar os fatos”
Historiador
avalia que há uma tentativa de revisionismo da ditadura e que não há paralelo
na história republicana de um governo como o atual. “É uma situação que produz
espanto”.
O historiador e cientista político Boris Fausto, 88 anos,
é autor de estudos clássicos sobre a história do Brasil e foi professor titular
do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo.
Em entrevista à Pública,
ele diz que não havia “ameaça imediata de implantação de um regime comunista”
nas vésperas do golpe militar que completa 55 anos na próxima segunda-feira.
Segundo ele, as afirmações mais recentes de Jair Bolsonaro sobre a ditadura não
são uma “reinterpretação” mas a “negação de fatos” comprovados na
historiografia em documentos, testemunhos e reconhecimento do estado brasileiro
dos crimes cometidos no período de exceção (1964 a 1985).
Fausto, que também é membro da Academia Brasileira de
Ciências, vê o cenário futuro com preocupação. “Andei falando antes das
eleições que estávamos na corda bamba, na beira do abismo e não vejo muitas
razões para mudar essa sensação. É triste”.
O
presidente Jair Bolsonaro disse que as Forças Armadas podem comemorar 1964. O
porta-voz da presidência justificou que o presidente não considera que houve um
golpe militar, mas uma reação apoiada pela sociedade contra uma alegada ameaça
comunista. Qual sua avaliação como historiador?
Ele [Bolsonaro] vai contra as evidências. A história
comporta sempre muitas interpretações na dependência da época em que se escreve
e na dependência da opinião de quem escreve. Agora, é impossível negar os
fatos. É impossível ir contra fatos estabelecidos. E, no caso de 1964, houve a
interrupção de um mandato de um presidente legítimo, houve cassação de
deputados, houve perseguições de toda ordem, houve violências. Então, não se
trata de uma reinterpretação, se trata de negar fatos e isso não faz sentido.
Mas isso não é preocupante vindo de um presidente da
república, negar fatos que, de várias maneiras, levaram pessoas a morrer sob
tortura, desaparecimentos?
É preocupante embora não seja surpreendente. Conhecendo a
carreira, o histórico do presidente eleito, não há nada de surpreendente que
ele queira comemorar o golpe de 1964. Ele tem feito coisas nessa linha, tem se
pronunciado nessa linha. Não há surpresa mas é uma pena que isso ocorra.
Muitos
argumentos usam a ameaça do comunismo para o golpe naquele período. Até pra
gente estabelecer questões históricas, afinal de contas, o Brasil estava à
beira do comunismo em 1964?
Vamos tentar discriminar essa questão. É preciso
considerar essa época de uma forma diferente dos dias de hoje. Nós estávamos em
plena Guerra Fria, existia Cuba com a vitória de uma revolução que seguiu para
um certo tipo, digamos, de socialismo autoritário. Então, é nesse contexto que
a gente pode entender a preocupação de setores militares. Ameaça imediata de
implantação de um regime comunista não havia. O que havia era uma situação de
divisão do país, de uma radicalização, às vezes, era efetiva, às vezes, era
mais verbal do que efetiva.
Agora, evitar essa situação por um golpe que durou 20 e
tantos anos, aí as coisas pesam de um modo diferente na balança. Se houvesse
uma convicção de que era preciso enfrentar, sim, uma situação muito difícil mas
preservar de qualquer forma as instituições democráticas a gente não teria
chegado ao ponto que chegou, e, enfim, com o fechamento que foi grave em 64 e
se tornou gravíssimo em 68 e resultando num período triste, difícil da nossa
história.
Ainda
desse ponto de vista da historiografia, não é incomum ver declarações que dizem
que a história tem sido contada com matiz ideológico socialista. O presidente
já falou a respeito, o próprio filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, publicou
mensagens em que afirma que a ditadura militar é mal retratada pelos livros
didáticos. Também o general da reserva Aléssio Ribeiro Souto já declarou que
“os livros de história que não tragam a verdade sobre 64 precisam ser
eliminados”. Estamos passando por uma tentativa de revisionismo? Em que medida
o revisionismo se torna perigoso para o registro dos acontecimentos históricos?
Que há uma tentativa de revisionismo, não há dúvida. As
forças armadas nunca reconheceram os aspectos mais negativos de 1964, nunca
fizeram uma análise de um ponto de vista em que fosse ressaltada as violências,
a quebra da ordem democrática, uma quebra até dos padrões de convivência dentro
do país. Na medida em que isso ocorre e com a chegada desse governo de direita,
sob certos aspectos, de extrema direita, entende-se que essa revisão que vinha
forte no meio militar ocorra também, digamos, no setor da direita como um todo.
Isso é muito ruim porque transforma um episódio de
violência, de ruptura do regime democrático, num episódio que pareceria uma
espécie de salvação nacional. Não existe dúvida que há um entendimento de
revisão no governo de tudo que ocorreu em 1964 e nos anos seguintes.
Tem
gente que chama de golpe, gente que chama de movimento, gente que chama de
revolução. Com base na tua pesquisa como historiador como o senhor define o
período?
Tendo a chamar mais de ditadura. O que não quer dizer que
a minha interpretação dos fatos tenha se alterado. É evidente para qualquer
pessoa que se disponha a estudar esse período que a ditadura de 1964 não é uma
quartelada. Acho que ninguém diz mais isso. Saiu dos quartéis, surpreendeu os
civis e eles se instalaram numa situação de absoluta força. O que quero dizer é
que, nas condições de divisão da sociedade brasileira, tal como estava e nas
condições de insatisfação de determinados setores, não estou falando só de
setores da elite, mas também de uma ampla classe média, o golpe contou com uma
mobilização importante. Isso legitima. E na medida que os anos se seguiram
foram os anos do milagre etc, das altas taxas de crescimento, esse prestígio
durou. É importante assinalar esse aspecto. Até para entender a durabilidade do
regime que não se deve apenas à força. Agora, quando você vê a supressão das
liberdades, a violência, a limpeza no parlamento, as prisões de toda ordem, a
perseguição de dirigentes sindicais, não há dúvida que se trata de um golpe. É
um golpe com parte de mobilização popular mas a natureza de golpe predomina.
Em
nota enviada sobre as “comemorações” do 31 de março, o general Azevedo,
ministro da Defesa, e os comandantes das Forças Armadas, destacam que a
intervenção militar ocorreu com o apoio da população e citam a Marcha por Deus
e a Família. O senhor considera que de fato o golpe foi apoiado pela população?
Até que ponto a Marcha pode ser vista como representativa do conjunto da
sociedade?
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade mostrou que o
golpe tinha um lastro social significativo no meio urbano, em setores da classe
média e da classe alta. Mas daí a falar em “movimento representativo do
conjunto da sociedade” vai uma enorme distância. A divisão social era evidente,
mesmo no seio das Forças Armadas. Basta lembrar o número de expulsões e
violências na instituição militar, logo após o golpe.
Analisando
agora os tempos recentes, há paralelos na história republicana brasileira de
algo parecido com esse conjunto de forças que fazem a composição do Governo
Bolsonaro?
Não vejo. É uma situação absolutamente inusitada e uma
situação que produz espanto.
O
que produz mais espanto ao senhor?
Muitas coisas.
No
terreno dos costumes?
Iniciativas retrógradas que colocam o Brasil a não sei
quantos decênios para trás. Aliás, de uma forma muito tosca, muito retrógrada
mesmo, numa sociedade que avançou muito no terreno dos costumes. Mas que também
tem um setor ponderável que se firmou muito numa tradição hoje superada, fora
até do entendimento histórico. Aliás, isso ficou muito claro desde antes da vitória
do Bolsonaro. Aí não tem surpresa nenhuma. Mas é um recuo que é uma coisa
bastante triste.
O
senhor classificou que é um governo de direita e em certos aspectos de extrema
direita. O senhor consegue me dizer qual é essa direita que hoje está no poder?
Primeiro, é uma direita com raízes internacionais. Essa
direita tem horror a globalização como processo, mas ela própria é uma direita
globalizada. E essa direita não é igual em todos os lugares. Em cada região ou
até em cada país, há um elemento que é mais característico desse avanço. Se
você pegar a Europa, é a xenofobia, fator que potencializa essa direita, que dá
um lastro a essa direita. A gente sabe qual é a força da xenofobia, a gente
conhece os movimentos totalitários ou autoritários do século XX e sabe que esse
é um elemento mobilizador muito forte.
Num país como o Brasil, para chegar até nós, a xenofobia
não existe com essa força da Europa. Não é esse o elemento central. O elemento
central é: a questão dos costumes, de uma sociedade muito dividida nesse ponto.
A meu ver a questão de gênero, da identidade feminina, que tem nos setores masculinos
e não só neles, um impacto muito forte que é preciso considerar. Isso tudo deu
muito lastro a uma direita nacional. O ódio ao PT, de que “PT nunca mais”, e é
preciso entender isso também. E o quarto fator é o medo e a impotência da
população diante da criminalidade. São caldos para o avanço dessa direita.
Na
sua visão, a questão do feminismo aglutina uma direita contrária ao movimento
de mulheres?
Sim. A verdade é que há perda do poder, um cisma do poder
do macho, seja no interior da família, seja nas relações de trabalho, e essa
ideia de que a subordinação da mulher está sendo quebrada – e está sendo
quebrada mesmo – tem um impacto muito grande para essa direita. E não é a toa
que Bolsonaro saiu na frente bem na faixa masculina da população e levou muito
tempo para alcançar uma votação quase equilibrada no setor feminino da
sociedade.
Gostaria
que o senhor fizesse uma análise desse perfil militar no governo.
Só observação preliminar. É por isso que a revisão pelos
militares do que ocorreu em 1964 e nos anos seguintes seria muito importante.
Eles não fizeram essa revisão. Ao contrário do que aconteceu na Argentina,
Chile etc.
Há algumas diferenças que são significativas, como o fato
de que esse grupo militar que assumiu o poder, não assumiu sozinho, mas tem um
peso muito grande. E esse peso tende a crescer, porque eles não são loucos e
eles enfrentam loucos de todo o tipo.
Esse grupo não tem, como tinha em 1964, interesse em
interromper um processo formal democrático. E nem mesmo, pelo menos até aqui,
tem impedido a liberdade de expressão.
Os arreganhos a liberdade de expressão tem ocorrido por
parte de setores ligados ao presidente, a própria presidência, aos seus filhos,
Olavo de Carvalho e companhia bela. Ataques específicos a Folha de S.Paulo e coisas
assim…
Nesse quadro, acho que há uma diferença grande com 1964 e
há, de fato, um setor militar que está disposto a manter o regime democrático e
as liberdades. Está disposto, mas não a qualquer preço. Acho que se você tem
uma situação de desordem, de um caos muito grande na sociedade essa linha pode
mudar, porque creio, de modo geral, que a posição militar é assim: a ordem vem
antes da democracia. Democracia tudo bem, mas se a democracia, no entender
deles, tiver comprometendo a ordem, eles não impedirão medidas de exceção.
Mas esse não é o quadro de hoje, de jeito nenhum. Tem-se
que entender isso se não você entra numa posição de estar em bloco contra tudo
e isso não leva a nada ou leva a coisas piores.
A
sensação é que de 2013 para cá as questões políticas e sociais se agudizaram
muito. O que o senhor acha?
Sim, acho que as coisas se enrolaram cada vez mais. Para
alguém que tenha frieza e não viva no Brasil e está meio distanciado, o que
acontece aqui é inusitado, causa muito espanto. Agora, nós estamos vivendo
desde 2013 anos inteiramente alucinantes.
Historiador
gosta mais do passado mas o cenário futuro o senhor vê com que perspectiva?
Com bastante preocupação. Com preocupação do mundo, eu
diria. E olha que, em geral, sou otimista. Andei falando antes das eleições que
estávamos na corda bamba, na beira do abismo e não vejo muitas razões para
mudar essa sensação. É triste. Eu já falei várias vezes essa palavra triste e
não por acaso, mas porque até para a vida cotidiana você ver problemas muito
grandes dentro de nós não é bom, em todos os sentidos. Mas vamos lá, tem-se que
viver.
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