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Evo Morales testa nas urnas a capacidade de conciliar avanço econômico e “bem viver”

Líder nas pesquisas, presidente boliviano minimiza custo socioambiental do extrativismo e das grandes obras no interior; eleição é no domingo (20).

Por Daniel Giovanaz - Brasil de Fato
Santa Cruz de La Sierra (Bolívia)
18/10/2019

Eugenio Álvarez, de 65 anos, é dono de uma pequena loja de ferragens no centro de La Paz. Na parede, exibe um calendário de 2019 com uma fotografia de Evo Morales em primeiro plano. Ao lado da imagem, o lema da campanha presidencial deste ano: “Futuro seguro”.

Evo Morales lidera pesquisa com 40% das intenções de votos, seguido por Carlos Mesa, com 22%. Foto: Presidência da Bolívia
Engana-se quem pensa que ele é um militante do Movimento ao Socialismo (MAS), partido do atual presidente. Álvarez repete expressões comuns do vocabulário da direita: meritocracia, alternância de poder, “todo político é corrupto”. Porém, há um tema que faz seu olho brilhar. Em um instante, é como se toda a simpatia por Morales viesse à tona: “Ele colocou a zona rural no mapa”.

Álvarez cresceu na província de Camacho, perto da mina de zinco Matilde, nacionalizada em 1952. O município Carabuco, de onde ele saiu na adolescência, fica próximo à fronteira com o Peru, a 160 km de La Paz. Hoje, o trajeto é percorrido em até três horas. Quinze anos atrás, não havia sequer uma estrada em boas condições que ligasse o povoado à capital boliviana.

“Com este governo, mudou muito. Há, por exemplo, luz e água no campo, que antes não havia. Fizeram estradas… foram muitas melhorias”, enumera. “Mas também tem gente que não valoriza [essas mudanças]”, lembra Álvarez, em referência aos protestos que o governo enfrenta por parte de ambientalistas e de uma parcela da população indígena que se diz impedida de conservar seus modos de vida tradicionais.

Uma das maiores polêmicas do governo Morales foi a proposta de construção de uma estrada de 300 km de extensão em meio ao Territorio Indígena y Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS), para unir os departamentos de Cochabamba (centro) e Beni (nordeste).

O Ministério de Obras Públicas prometeu que o empreendimento seria "amigável" com o meio ambiente, mas estudos mostraram que o impacto sobre a fauna e sobre a vida das comunidades indígenas era inevitável. Em 2011, um grupo de ativistas virou notícia no mundo todo ao percorrer 600 km em 65 dias com cartazes e palavras de ordem contra a realização da obra.

"A esses ambientalistas coloniais não interessa que o movimento indígena tenha luz ou que tenhamos estradas. Não entendem o indígena como sujeito, mas como objeto de estudo”, disse Morales em um ato pró-construção da pista em 2017. O presidente de origem indígena chegou a afirmar que a maior parte de seus críticos moravam na área urbana, por isso não conheciam as dificuldades da vida longe dos grandes centros e eram incapazes de compreender a complexidade do conceito de “bem viver”.

Um dos exemplos citados por ele foi o acesso a serviços básicos. Sem a estrada, indígenas de comunidades isoladas levariam entre dois e três dias para chegar a um centro de saúde. O empreendimento, segundo o presidente, permitiria o deslocamento em, no máximo, cinco horas.

O governo estima que havia representantes de 64 das 69 comunidades que habitam o parque nacional naquele ato em apoio à obra, e que os demais teriam sido enganados ou cooptados pela oposição. Uma das hipóteses levantadas por apoiadores do Movimento ao Socialismo (MAS) é que a construção da estrada contraria os interesses das oligarquias de Santa Cruz de la Sierra, que perderiam o controle sobre a produção agropecuária da região – com a nova via, o gado que sai do departamento de Beni, por exemplo, chegaria ao centro do país sem passar por Santa Cruz.

Nos últimos anos, o presidente vem ampliando os investimentos no programa “Mi Barrio Mi Vivienda”, uma espécie de Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que leva pavimentação, saneamento e água potável a bairros periféricos e povoados rurais como Mecapaca, a 30 km de La Paz.

Equação difícil
Um dos países pobres da América Latina, a Bolívia tem gás natural, petróleo e lítio em abundância, além de reservas de estanho e ouro. Sem saída para o mar, o país aposta na mineração e na agricultura como motores do crescimento.

Os debates que antecederam a Constituição de 2009, que transformou a Bolívia em Estado Plurinacional, inspiravam-se na filosofia do “bem viver”, baseada em valores dos povos originários dos Andes. Dez anos depois, o país sobrevive basicamente do extrativismo e tem o desafio de equacionar as necessidades da sociedade de mercado, honrando o compromisso formal de valorizar a convivência harmoniosa entre o ser humano e a natureza.

Entre os fundamentos do “bem viver”, sistematizados pelo próprio governo, estão, por exemplo: erradicar o sistema capitalista; garantir água para todos os seres vivos; desenvolver energias limpas; diversificar economias; garantir serviços básicos como direito humano; respeitar a Mãe Terra (ou Pachamama).

Desde a primeira eleição de Morales, o país multiplicou por quatro seu Produto Interno Bruto (PIB) anual, em meio a questionamentos sobre o custo social e ambiental desse crescimento. 

Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Fabio Luis Barbosa dos Santos entende que o governo deixou de lado o princípio do “bem viver” em decorrência justamente de amarrações políticas feitas à época do referendo constitucional de 2009, para pacificar o país. Na ocasião, grandes proprietários de terra da região de Santa Cruz de La Sierra apostaram todas as fichas em um movimento separatista e, por muito pouco, a Bolívia não foi dividida.

“Essas negociações [para solucionar os conflitos] envolveram aproximações com a oligarquia boliviana, que acabaram condicionando a margem de manobra futura do governo”. “A Constituição foi aprovada com mais de 100 modificações. Naquele contexto, o governo se sentiu vitorioso porque o objetivo era aprovar a Constituição e pacificar o país. Mas fazer isso teve um preço”. Mesmo que Morales tenha sido reeleito em seguida, com maioria no Legislativo, “a radicalização que se esperava não se realizou”, aponta o pesquisador.

Santos lembra que, a partir de 2010, não houve avanços nas políticas progressistas que caracterizaram o primeiro mandato, como a proibição dos transgênicos e um processo incipiente de distribuição de terras.

Entre outras críticas que Morales enfrenta às vésperas das eleições, está a falta de clareza nos contratos de exploração de lítio junto a empresas alemãs e chinesas e a permissão de exploração mineral em áreas protegidas e parques nacionais.

Estima-se que ao menos 30% dos parques nacionais bolivianos têm concessões petroleiras ou mineiras em seu território. Imagens aéreas mostrando incêndios gigantescos da Amazônia boliviana contribuíram para manchar a imagem do presidente por algumas semanas.

Ambientalistas reprovam Morales por promover uma lei que quadruplicou a área que pode ser queimada para atividades agrícolas. 

Gladstone Leonel Jr., professor de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de artigos sobre a Constituição de 2009, interpreta que os questionamentos a Evo Morales devem ser lidos dentro de um tabuleiro político extremamente delicado, que envolve esforços por parte do governo para assegurar estabilidade a um país que é recordista de golpes no continente.

Esse tabuleiro inclui, por exemplo, uma relação amistosa com setores do agronegócio, que estão expandindo suas lavouras ilegais de soja transgênica. "Não por acaso alguns movimentos indígenas, como o Cidob [Confederação de Povos Indígenas da Bolívia], rompem com o governo, apesar de outras parcelas indígenas significativas manterem seu apoio", explica.

O pesquisador pondera, no entanto, que a Constituição é uma conquista extraordinária dos povos originários, porque foi capaz de colocar em evidência na legislação boliviana princípios da cosmovisão andina que antes eram desprezados. Além disso, ele lembra que a oposição boliviana que disputa uma vaga no segundo turno representa um retrocesso em todos esses aspectos, o que torna Morales, novamente, a melhor opção. 

"O povo boliviano precisa ter a perspicácia de observar o que está acontecendo nos países vizinhos", finaliza, em referência aos governos neoliberais em crise. O ex-presidente e segundo colocado nas pesquisas Carlos Mesa é, aos olhos de muitos bolivianos da zona rural, o retorno a uma época de escassez e exclusão social. 

Óscar Ortiz, que está em terceiro lugar, tem a imagem associada às oligarquias de Santa Cruz de la Sierra e, em termos ambientais, é o que apresenta a agenda menos clara – embora critique o governo Morales, depende do apoio do agronegócio local.

Limites
Em paralelo ao discurso da nacionalização dos hidrocarbonetos, uma das marcas da gestão do MAS, o governo passou a oferecer, em 2010, incentivos a transnacionais para exploração de petróleo – cerca de US$ 30,00 por barril de óleo cru extraído. A petroleira pública YPBF não dá conta de extrair todo óleo porque tem apenas duas operadoras no país: a Chaco, que é 90% boliviana, e a Andina, que pertence 50% à Bolívia e 50% à espanhola Repsol. Também atuam no país a brasileira Petrobras, a holandesa Shell, a francesa Total e, em menor medida, a russa Gazprom e a venezuelana PDVSA.

Instalações da YPBF, petroleira estatal boliviana: Foto: divulgação/YPBF

A exploração dos hidrocarbonetos, que antes era restrita à região sudeste do país, começa a avançar para a região norte amazônica. Nesse contexto, a pesquisadora Silvia Molina, do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Laboral e Agrário (Cedla) cita como aspecto relevante uma mudança ocorrida em 2014 nas regras de consulta prévia aos indígenas sobre os contratos realizados em seus territórios.

“Não quer dizer que o governo mudou suas políticas, mas que agora as contradições do governo se tornam públicas”, afirma. Molina também critica a entrega de “terras baixas” para camponeses da região dos Andes, a partir de uma concepção de que “os indígenas camponeses seriam mais indígenas que os indígenas com modo de vida tradicional, e por isso mereceriam aquelas terras”.

“Esse foi um dos temas que mais gerou debate no país. Participaram, inclusive, membros da Anistia [Internacional] e ex-funcionários da Comissão Interamericana [de Direitos Humanos], debatendo o que é ser indígena. Surge aí a pergunta: Evo é indígena, é camponês, é colonizador? Qual a diferença?”, questiona a pesquisadora. O debate conceitual, segundo ela, é decisivo porque impacta as regras de consulta prévia. Para ela, indígenas são aqueles que mantêm o território coletivo intocado, dentro do possível.

O conceito entra em conflito com artigos acadêmicos escritos pelo próprio vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, que define o indígena como expressão da “etnicidade politizada”. Esse processo de politização, segundo a análise dele, teria se dado de maneira mais intensa na região altiplânica, entre La Paz e Potosí, onde os indígenas foram vítimas da escravidão pelos colonizadores europeus para extração de prata.

Diferenças conceituais à parte, a imagem recente de Evo Morales ajudando os bombeiros a apagar o fogo na selva amazônica, próximo à fronteira com o Paraguai, foi amplamente usada pela oposição de maneira irônica. Por duas semanas, no mês de setembro, o presidente apresentou queda nas intenções de voto, mas se recuperou no mês de outubro e voltou a ser o candidato que mais cresce nas pesquisas.

Imagem inabalável no campo
De origem indígena, a vendedora Saturnina Calizaya tem 54 anos e nasceu na cidade de Viacha, na província de Ingavi, a sudoeste de La Paz. De longe, se vê que é uma “chola” ou “cholita”, como são chamadas as mulheres mestiças que utilizam vestimentas tradicionais dos povos originários. Para Calizaya, as críticas a Morales são injustas e baseadas em mentiras plantadas pela oposição.

“Os [moradores] da Amazônia estão caluniando a nosso irmão Evo, como se ele estivesse incendiando a floresta. Mas não é assim. A direita está pagando dinheiro aos irmãos que moram na Chiquitania [região amazônica]. Estão financiando [os incêndios] para voltarem a tomar conta da Bolívia. Mas nós estamos inteirados de tudo isso e não vamos permitir”.

Saturnina exibe a bandeia do Movimento ao Socialismo (MAS) e apoia Evo Morales. Foto: Daniel Giovanaz

“Temos que cuidar da nossa economia”, finaliza a trabalhadora, aderindo a uma argumentação que há anos vem sendo trabalhada pelo governo Morales junto a sua base eleitoral. A linha adotada pelo presidente é a de minimizar ou relativizar os custos sociais e ambientais do avanço extrativista no interior.

A narrativa nem sempre funciona. Parte dos eleitores que apoiaram Morales em eleições anteriores hoje se mostram indiferentes, por discordarem do extrativismo "sem limites" e não verem na oposição uma saída para esse problema.

“Dia 20 de outubro será um dia chato”, resume German Sucso, designer gráfico de 30 anos. O morador de La Paz analisa que os números do crescimento do PIB não se refletem na vida de todos os cidadãos. Ele, por exemplo, conseguiu comprar uma casa, mas atribui essa conquista a seu próprio mérito, e não às políticas econômicas do governo Morales.

Diretor-geral de Participação Cidadã da Vice-presidência do Estado Plurinacional, Juan Carlos Pinto Quintanilla reconhece a dificuldade de equilibrar os fundamentos do “bem viver” com a necessidade e gerar riquezas e suprir as necessidades materiais da população.

Ex-guerrilheiro do exército Tupac Katari, símbolo da luta dos povos indígenas por direitos, ele admite a contradição imposta pelo capitalismo e reflete sobre os horizontes das transformações realizadas no país.

"Administrar a economia com capacidade de gerar níveis de bem-estar importantes, com sustentabilidade, foram parte das nossas conquistas. Este é um governo que assume que a sua responsabilidade é dar à maioria uma oportunidade histórica que nunca havia sido dada neste país. Então, acreditamos que, o que fizemos nesse período é o que foi possível fazer", pondera.

"A perspectiva é que não se abandonem os sonhos, mas sempre em contraste com uma realidade que pressupõe intervenção [na natureza], limitações ideológicas da própria vanguarda indígena, originária e camponesa, que assume muitas vezes o poder como um espaço de acomodação individual e não de luta coletiva".

Mesmo com o crescimento dos últimos anos, a Bolívia tem apenas o 123º PIB per capita mundial em um ranking com 192 países – cinco vezes menor que o do Chile e da Argentina e três vezes menor que o do Brasil, por exemplo. 

Na fachada do prédio principal da Universidad Mayor San Andres, em La Paz, há uma faixa de mais de 15 metros de comprimento contra o “ecocídio” supostamente incentivado pelo governo. Pichações nas grandes cidades também sugerem a insatisfação dos moradores com o custo socioambiental das grandes obras no interior e com os incêndios na Amazônia – que não têm autoria comprovada.

O mesmo repúdio não se verifica entre as populações diretamente afetadas. Se as eleições fossem disputadas apenas na zona rural, Morales venceria em primeiro turno com 52% das intenções de voto contra 15% do segundo colocado, Mesa. Considerando campo e cidade, ele tem 40% das intenções de voto contra 22% do ex-presidente, segundo o instituto IPSOS.

Edição: Rodrigo Chagas – Brasil de Fato

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