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Adolescentes denunciam tortura e mostram marcas de violência em comunidade terapêutica evangélica

Reportagem acompanhou inspeção e encontrou sinais de maus tratos em instituição que recebe verbas públicas. 

Durante entrevista, adolescente mostrou porrete que, segundo seu relato, era utilizado por um dos monitores como "punição". Foto: Vitor Shimomura/Agência Pública

Por Clarissa Levy - Agência Pública 
31/10/2020

No dia em que Mateus* tentou fugir, fazia muito calor. Era quase meio-dia quando o menino de 15 anos, olhos pretos e pele escura teve o impulso. Não havia feito planos. Pouco antes do almoço, percebeu que estava sozinho, sem ninguém observando, e saiu em disparada. Desceu correndo por um pasto até chegar à rodovia BR-354, que atravessa o município mineiro de Itamonte, e seguiu beirando as montanhas do Itatiaia, rumo ao Rio de Janeiro. Desesperado, trotando no asfalto quente, Mateus sentia o corpo ferver. 

Sob o sol forte, se lembra de ter corrido sem parar por mais de 40 minutos. Até que uma caminhonete prata se aproximou, encostou no meio-fio e o menino viu o monitor da Comunidade Terapêutica Desafio Jovem Maanaim, onde estava internado havia quase nove meses. Corpulento, o homem não teve dificuldade em enfiar o adolescente no carro, entre murros e tapas. Conforme relato do jovem, enquanto dirigia, o monitor gritava e dava mais tapas em Mateus, que, fisicamente exausto, se encolhia na direção da porta do passageiro. 

O trajeto foi rápido, em menos de 15 minutos estavam de volta à unidade de adolescentes da comunidade terapêutica do pastor Amarildo Silva, que, além dessa, tem quatro outras unidades e uma igreja evangélica de mesmo nome. 

Assim que o carro estacionou, Mateus foi arrancado do veículo e levado a uma salinha ao lado do escritório para apanhar mais, como contou à reportagem. A violência foi suficiente para que os outros adolescentes internos da comunidade terapêutica ouvissem, da parte de cima do terreno onde ficam os dormitórios, os gritos de Mateus pedindo socorro, conforme relataram à reportagem. 

“E desde então ele está assim: com esse jeito de lerdo. É por causa do remédio que estão dando para ele, moça”, explicou outro adolescente internado na entidade. Desde que foi recapturado, Mateus está constantemente dopado, dizem os colegas. 

O adolescente tem sido submetido à medicação antipsicótica e sedativa, sem receita médica, conforme verificou a psicóloga Janaína Dornas no dia 2 de outubro, quando a Agência Pública visitou a comunidade terapêutica acompanhando uma inspeção realizada por representantes do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura, Frente Mineira Drogas e Direitos Humanos, Instituto de Direitos Humanos e Secretaria Estadual de Saúde Mental de Minas Gerais. 

Disciplina e violência

No alto da serra da Mantiqueira, nas bordas do pequeno município de Itamonte, o centro de recuperação para usuários de drogas promete curar todos os vícios com a palavra de Deus. Recebendo verbas públicas há mais de 15 anos, a Comunidade Terapêutica Desafio Jovem Maanaim aplica um programa de tratamento importado dos Estados Unidos que se baseia em estudos bíblicos e isolamento social. 

A inspeção na Comunidade Terapêutica Desafio Jovem Maanaim foi deliberada pelo Ministério Público Federal (MPF) como parte de um inquérito civil aberto, ainda em 2017, para apurar denúncias de irregularidades praticadas dentro da entidade. No início de outubro de 2020, a reportagem acompanhou a visita a convite do grupo de trabalho e encontrou 38 meninos que estariam sendo submetidos a uma rotina de religiosidade, ameaças e violência física. 

Ao todo, participaram da visita cinco psicólogas, uma assistente social, um historiador e um perito do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura. 

Na manhã quente da sexta-feira 2 de outubro, a equipe encontrou, além de Mateus, outros meninos com o corpo marcado por sinais de agressões sofridas, conforme relato dos adolescentes, na comunidade terapêutica. Luís Felipe*, de 16 anos, tinha nas costas uma ferida que custava a cicatrizar: quando estava formando casquinha, o machucado teria sido reaberto por uma pancada de cabo de vassoura. Adolescentes que testemunharam a cena, dias antes, contaram que o cabo de madeira quebrou nas costas do menino, tamanha a força do golpe que o atingiu. 

Cabo de vassoura teria permanecido no quarto dos internos como uma memória da violência.
Foto: Vitor Shimomura/Agência Pública
Além do corte nas costas, Luís Felipe tinha uma marca roxa esverdeada do tamanho de um sabonete em uma das panturrilhas, outro hematoma na nuca e sinais de inchaço ao redor da boca. Os machucados recentes seriam marcas das punições que o adolescente recebeu dos monitores por descumprir uma regra do tratamento da Desafio Jovem Maanaim, onde estava internado graças a um convênio da entidade com o governo federal. 

Há pouco mais de 25 dias na entidade, o adolescente tentou mostrar as marcas de agressão para sua mãe durante uma chamada de vídeo monitorada pela coordenadora do centro de recuperação. “Eu e meu filho sabemos falar sem usar palavras. Na última ligação ele estava tentando me mostrar as marcas como se não fosse nada, para ninguém perceber”, conta a mãe do adolescente. Luís Felipe entende que se denunciar os maus-tratos apanhará mais. 

E sua família preocupa-se com o fato de que, enquanto estiver na comunidade terapêutica, sua vida está nas mãos dos pastores que controlam a instituição. Por isso, nesta reportagem, os nomes dos adolescentes e familiares de internos da comunidade terapêutica foram alterados. “Eu tenho muito medo que essa denúncia se reverta em mais castigos. O Luís Felipe me disse que está com medo de morrer lá”, contou a mãe. 

O medo de imaginar o filho morto na comunidade terapêutica não é infundado. Dois meses antes, um adolescente foi assassinado dentro da mesma entidade, onde estava internado havia sete meses tentando se recuperar do uso prejudicial de drogas. Em agosto, três adolescentes trabalhavam, sem supervisão, limpando o chiqueiro até que, durante uma discussão, um interno atingiu a cabeça de Lucas Pedreira Rosa com uma enxada, levando-o a óbito. Contamos a história de Lucas aqui. 

Adolescente diz que, ao tentar se defender de golpes, encostou as costas com ferimento na parede, que ficou manchada. Fotos: Vitor Shimomura/Agência Pública

Isolamento, trabalho e religião

Durante a inspeção, a Pública entrevistou 11 adolescentes internados. Meninos de 12 a 16 anos que contaram que se sentiam prejudicados pelo uso de drogas e desejavam receber tratamento. Quase todos haviam sido internados porque pediram ajuda. “Eu ouvi que aqui tinha médico, remédio, psicólogo, então eu e minha mãe achamos que eu iria receber uma terapia”, lamentou em voz baixa um menino de 14 anos. 

Em troca da promessa de tratamento, no entanto, os adolescentes vivem um dia a dia resumido a isolamento, trabalho e religião. Quando não estão trancados nos quartos, estão em atividades de discipulado bíblico ou trabalhando na limpeza da comunidade terapêutica. Duas vezes por semana têm palestras com um psicólogo sobre ‘‘desenvolvimento pessoal” e algumas tardes podem jogar futebol ou sinuca. 

Conforme relataram, a rotina é mantida graças à vigilância e às ameaças constantes. “Aqui, se cantar um sambinha, uma música que não é de Deus toma castigo”, contou um interno. Segundo relatos, também são punidos aqueles que se recusam a fazer alguma tarefa da laborterapia, como carregar blocos sob o sol. Todos são obrigados a participar dos cultos. Os internos só podem falar com a família durante uma ligação de até 10 minutos, uma vez na semana, sempre monitorada pela coordenadora. As cartas para as famílias são lidas pelos monitores. 

Quando alguém desrespeita as regras, pode receber castigos que variam em intensidade: banho frio, dormir sem colchão, ficar trancado no quarto, tomar tapas, apanhar com porrete de madeira ou ser dopado com medicação psicotrópica, contaram os meninos. 

“É uma grande mentira que há tratamento. O que existe é um projeto para disciplinar corpos e mentes”, aponta Andreza Almeida, assistente social que acompanhou a inspeção na Maanaim. “Visitamos um depósito de adolescentes vulneráveis submetidos a um tratamento coercitivo, sem base científica, com viés de aprisionamento”, define Andreza, que trabalha especificamente com atendimento psicossocial para crianças e adolescentes. 

Para Daniel Melo, perito do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura, “o que vimos é a completa ausência de uma metodologia de cuidado em saúde”. Os responsáveis pelo “aconselhamento terapêutico religioso”, pelo controle dos internos e até pela dispensa de medicamentos são monitores geralmente adolescentes que estão há mais tempo internados ou ex-internos que trabalham na entidade. No papel, a Maanaim conta com psicólogos e enfermeiros, mas esses profissionais aparecem esporadicamente, sem participar da rotina da entidade, apurou a inspeção. “Não há preparo e a equipe não tem formação para lidar com adolescentes. Na falta de instrumentos, recorrem às ferramentas mais primitivas, como o uso da força”, analisa Melo. 

“Eu achava que, se eu viesse para cá, seria uma chance de ficar melhor. Na rua, eu andava sofrendo com ameaças, apanhando da polícia… O problema foi chegar aqui e ver que qualquer coisa é na base da pancada”, desabafou um adolescente de 15 anos. 

Ele contou que durante um culto que os internos foram acompanhar em outra unidade da clínica alguém assobiou para uma garota. Quando os meninos voltaram para a unidade, dois garotos foram levados até o quarto do monitor. “E aí começou: tapão, chute, murro.” Os dois adolescentes que apanharam relataram que, enquanto os agredia, um dos monitores que coordena a clínica falava: “Seus noia, que desrespeito assobiar, vocês acham que ela iria se interessar por drogados?”. 

A história foi confirmada por outros dois internos que viram os adolescentes sendo levados ao quarto do monitor. Os meninos que teriam apanhado tinham 15 e 14 anos e estavam internados havia menos de um mês. 

Todos os adolescentes entrevistados afirmaram que a violência contra eles na comunidade terapêutica é cotidiana. Segundo seus relatos, o monitor adulto da entidade, além de um monitor adolescente, possuem porretes para agredir os internos. Além deles, uma coordenadora também é acusada pelos jovens de cometer agressões. 

“Mesmo que não fosse utilizado, somente a existência de um bastão todo preparado, encapado, na posse de um monitor configuraria um mecanismo de tortura psicológica”, aponta o perito Daniel Melo. 

Rodrigo*, de 16 anos, é um adolescente que viveu três anos e um mês internado na Maanaim. Os meses foram passando, mas ele nunca era considerado “curado” pelos pastores. “Cada vez eu ficava mais revoltado e cada vez eles aumentavam minha internação, como punição.” Hoje, ele vive com a mãe no interior de Minas Gerais. “Mas eu tinha certeza que morreria lá, preso”, lembra. Internado à força com 11 anos, ele relata que foi espancado inúmeras vezes. Para ele, o pior momento na clínica foi quando teve que ver três monitores agredirem de madrugada um menino de 12 anos que havia furtado um pacote de biscoito de outro colega. Acrescenta: “Muitos nem chegam a contar o que viveram lá, até porque se contarem ninguém vai acreditar. Eu mesmo nunca tinha contado isso para ninguém”. 

Longe do mundo

Em tese, a comunidade terapêutica segue uma metodologia de recuperação disseminada em 130 países. 

Longe do mundo e das coisas do mundo. Essa é a primeira condição para o tratamento de usuários de drogas no modelo Teen Challenge (Desafio Jovem), utilizado pela Maanaim de Itamonte. O programa de discipulado evangélico é estruturado no isolamento social e na evangelização cristã. 

Em entrevista à Pública, o pastor Wagner Zanelatto, presidente do programa Desafio Jovem no Brasil, explicou que o programa exige “que a pessoa em tratamento fique afastada do meio social e dos convívios que levam às drogas”. Além do isolamento físico, é necessário que a pessoa internada se afaste dos seus valores e costumes “do mundo”. No caso da Maanaim, os adolescentes disseram que só é permitido ouvir música gospel. Livros que não tratem de cristianismo são censurados e outras crenças são consideradas demoníacas. 

A metodologia é descrita em documentos do Teen Challenge global, consultados pela Pública. Na apresentação brasileira do currículo está descrito: “os objetivos da primeira etapa de tratamento são: sair das drogas, tornar-se um seguidor de Cristo e aprender o modo de vida cristão”. 

O tratamento se baseia nos chamados “Estudos Pessoais para os Novos Cristãos”, um conjunto de aulas que inclui: memorização das escrituras, lições bíblicas e leitura pessoal. A essência do Teen Challenge é formada por fé, oração, evangelismo e dependência do Espírito Santo – segundo documentos oficiais do programa. 

A metodologia embasada no “fator Jesus” foi criada nos Estados Unidos por David Wilkerson na década de 1960 e de lá para cá se alastrou pelo mundo. No Brasil, o programa foi difundido principalmente pelo livro de Wilkerson A cruz e o punhal – best-seller que conta a evangelização de adolescentes – e pelo missionário americano da Assembleia de Deus pastor Bernard Johnson Jr, conhecido por organizar cruzadas evangelísticas massivas. 

A origem da Desafio Jovem Maanaim bebe dessa fonte. O pastor Amarildo Silva, proprietário da comunidade terapêutica, teve sua formação nos movimentos cristãos influenciados pela obra de Wilkerson, tendo passado pela Assembleia de Deus e pelo movimento da Renovação Carismática Católica. Engajado na missão de evangelizar adolescentes, o pastor criou sua primeira comunidade terapêutica há 30 anos e hoje possui quatro unidades, além de uma igreja própria, também nomeada Maanaim. 

Para o pastor Amarildo, os vícios são encarados como problemas de origem espiritual e os efeitos gerados pelo uso de substâncias são considerados manifestações do demônio. Em seu livro Como expulsar demônios: a unção que você precisa, o pastor descreve ao longo de 146 páginas como tratar com oração os casos mais comuns do que chama de demonismo: depressão, opressão e vícios. Na obra, ele relata o caso de uma jovem usuária de drogas internada na Maanaim que “era a própria incorporação do diabo”, em suas palavras. Ele narra como a libertou da “depressão, vícios, possessão por orixás e promiscuidade” com orações e sessões de exorcismo. 

Em entrevista, o pastor explicou que, quando a psicologia, a medicina e os outros métodos utilizados na comunidade terapêutica falham, ele recorre aos rituais de libertação para “vencer a guerra contra o demônio” e provocar no interno “um novo nascimento espiritual”. 

Semanalmente, ele ministra cultos de “quebra de maldição” nas unidades da Maanaim. Os rituais costumam ser agitados, com pessoas “possuídas” sendo “libertas”. Na opinião de alguns internos, as cerimônias são emocionantes e facilitam a conexão com Deus. Para outros, não passam de encenação e ofensas a outras religiões, em especial aos orixás das religiosidades de matriz africana. Durante os cultos, conforme relataram, os internos devem repetir a oração elaborada pelo pastor, que, entre outras coisas, diz: “Eu renuncio a Iemanjá/ Eu renuncio à masturbação/ Eu renuncio ao lesbianismo/ Eu renuncio ao homossexualismo…”. 

Além da formação nas igrejas evangélicas, o pastor Amarildo Silva já esteve quatro vezes nos EUA participando de programas de formação do Teen Challenge em unidades americanas. “Fui lá para conhecer, ver como fazem e qualificar nosso trabalho aqui”, contou em entrevista à Pública. 

Nos Estados Unidos existem mais de 200 unidades que utilizam a metodologia. O programa é conhecido e foi apoiado por Bush no início dos anos 2000. Na época, a medida gerou controvérsias, e em entrevista ao New York Times pesquisadores apontaram ausência de evidências científicas sólidas para atestar resultados positivos do método Teen Challenge. 

Recentemente, uma investigação do Reveal, centro de jornalismo investigativo americano, denunciou a exploração ilegal do trabalho de internos em 33 clínicas Teen Challenge nos Estados Unidos. Segundo a matéria, “programas de recuperação estão recrutando usuários para formas de servidão contratada, exigindo que trabalhem sem pagamento ou por centavos de dólar em troca de sua estada”. 

Globalmente, o Teen Challenge funciona como uma federação que une comunidades terapêuticas, dita as diretrizes para o tratamento, traduz materiais para mais de 60 línguas, mas não tem ingerência direta sobre as unidades cadastradas. Em entrevista à Pública, Randae Davis, representante do escritório global, afirmou que desconhece casos de violações de direitos humanos em entidades do Desafio Jovem. Disse também que “o programa acolhe todos, mas, por ser baseado na fé cristã, não pode aceitar o estilo de vida homossexual”. 

No Brasil, além da comunidade de Itamonte, existem outras 29 certificadas com o selo Teen Challenge para aplicar o programa padronizado de estudos bíblicos. Entre as que utilizam “Desafio Jovem” no nome, quatro apareceram em relatórios de denúncias oficiais com irregularidades no tratamento. Diferentemente dos EUA, por aqui muitas funcionam sustentadas por verbas públicas. 

Em 2019, comunidades terapêuticas com “Desafio Jovem” no nome receberam R$ 11,8 milhões do Ministério da Cidadania para internações. O segundo maior volume de recursos pago a uma comunidade terapêutica, montante de R$ 1,3 milhão, foi para a Desafio Jovem ETM (Escola de Treinamentos Missionários), uma comunidade terapêutica que aplica o programa Teen Challenge com foco em formar missionários para a igreja. Até quatro anos atrás, a escola de missionários fazia parte do grupo de clínicas do pastor Amarildo. 

“Mais um corpo para ganhar dinheiro”

Para Andreza Almeida, assistente social, não existe um plano que possibilite um tratamento efetivo na entidade. Isso porque “há um completo desrespeito à história singular de cada pessoa internada”. A partir de entrevistas com internos e observação dos prontuários da unidade, Andreza considera: “A história clínica ou o trajeto de vida dos meninos não importa, eles são tratados como uma massa. Mais um corpo para ganhar dinheiro, receber verba via convênio público”. 

Em muitos outros aspectos, o modelo de tratamento não atende às regulamentações estipuladas para centros de recuperação desse tipo no Brasil. E isso não é novidade. Em 2017, durante a Inspeção Nacional de Comunidades Terapêuticas, irregularidades no funcionamento da Maanaim foram apontadas. Na época, foi constatada a ausência de equipe técnica qualificada e de plano de tratamento singular para cada adolescente – condição que descumpria critérios básicos dos editais de financiamento público. 

Ainda em 2018, o MPF abriu um inquérito para investigar e, após a constatação de irregularidades, buscou pressionar os órgãos responsáveis a tomar providências. O despacho elaborado pelo MPF descrevia em detalhes as ilegalidades do tratamento e mencionava: “as penalidades aplicadas aos internos da Comunidade Terapêutica Maanaim se aproximam muito de atos de tortura”. O documento foi enviado para a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), que financiava vagas na Maanaim, e para a Controladoria-Geral de Minas Gerais (CGU), solicitando ações de controle. Na época, o MPF encaminhou um ofício ao diretor da entidade, pastor Amarildo, cobrando melhorias no tratamento e adequações à legislação. “Mas, passado esse tempo, infelizmente vimos que as medidas extrajudiciais se mostraram esgotadas”, afirma Lucas Gualtieri, o procurador responsável pelo inquérito. 

As denúncias publicadas e o procedimento instaurado pelo MPF, três anos antes, não foram suficientes para conter irregularidades ou controlar o repasse de verbas para a Desafio Jovem Maanaim. A unidade de adolescentes visitada pela Pública continua sendo sustentada por recursos públicos em 2020. 

Em setembro, 82% das internações registradas eram custeadas com verbas federais ou municipais. Para cada adolescente internado por meio de convênio federal, o governo paga R$ 1.596,44 por mês. O valor pago pelas prefeituras varia entre R$ 800 e R$ 1.200. 

No último ano, somente da esfera federal R$ 820.636,74 foram empenhados para pagar internações nas quatro unidades da Desafio Jovem Maanaim localizadas no entorno de Itamonte – a que atende meninos adolescentes, uma que acolhe mulheres de todas as idades e mais duas chácaras que tratam homens adultos. “Nós sempre contamos com orçamento público”, confirmou em entrevista o proprietário da Maanaim, pastor Amarildo Silva. 

Além do convênio com Brasília, as comunidades terapêuticas receberam verbas de ao menos 12 municípios, segundo registros no Diário Oficial, considerando os últimos cinco anos. Mas não só. Em 2019, a Maanaim recebeu R$ 150 mil via emenda parlamentar do deputado pastor Vanderlei Miranda (MDB) para comprar uma van. 

O consolidado investimento público na entidade não é acompanhado por um controle de qualidade com a mesma solidez. A Pública perguntou à direção da entidade sobre fiscalizações da esfera federal, segundo preconiza o plano de monitoramento oficial, mas não obteve respostas concretas, e nenhuma documentação que comprovasse visitas para o controle de qualidade do tratamento foi apresentada. Durante três semanas, a reportagem solicitou entrevista com representantes do braço do Ministério da Cidadania responsável pelas comunidades terapêuticas – a Secretaria Nacional de Cuidado e Prevenção às Drogas (Senapred). Mas até a publicação desta matéria não obteve resposta. 

“Como uma máfia”

A farmacêutica de 34 anos Stefania* teve contato com a Maanaim pela primeira vez em 2013, como interna. Em fevereiro de 2019, voltou para a comunidade terapêutica como voluntária para cuidar dos adolescentes. Lá, se apaixonou por um obreiro (nome que se dá aos auxiliares do pastor na hierarquia evangélica), ficou noiva e tentou manter a rotina de 24 horas de trabalho por dia sem receber salário. “Até que não aguentei mais ser cúmplice dos absurdos”, lembra. 

No período em que trabalhou na unidade feminina da Maanaim, via meninas apanhando quase todo dia. “Cansei de ver adolescente ser amarrada e dopada porque tinha se rebelado”, contou à reportagem. Stefania explica que uma das estratégias para conter os internos é o uso de medicação. “Por exemplo, sobrou um Neozine 100 mg [medicamento antipsicótico com efeito sedativo] de um interno que entrou com receita, eles pegam, guardam e usam quando precisam conter algum rebelde”, explica. 

Na inspeção realizada em outubro, ficou evidente que não havia prescrição médica para a aplicação de medicação que estava sendo ministrada ao adolescente que havia fugido. Checando o prontuário do adolescente, não foi encontrada a receita para as medicações que ele estava recebendo do monitor. “Estavam injetando nele Haldol Decanoato [medicamento antipsicótico forte] sem seguir quaisquer protocolos. Na rede de saúde, esse medicamento só pode ser ministrado com acompanhamento”, disse Andreza Almeida. Segundo a bula, o medicamento deve ser aplicado apenas em adultos e uma vez ao mês. “Pelos relatos, estavam aplicando no adolescente a cada duas semanas, um absurdo”, relembra Andreza. 

Durante a inspeção, a psicóloga Janaína Dornas conferiu o prontuário do adolescente, que parecia dopado, e verificou que faltavam receitas atualizadas. “A medicação que estava sendo ministrada no adolescente em outubro não tinha prescrição médica registrada. E, quando eu perguntei para o médico responsável sobre um medicamento, ele não soube responder. Ele, visivelmente, não sabia nem o que já tinha sido prescrito”, disse Janaína. O carimbo nas receitas antigas era do médico da entidade, o dermatologista Guilherme Mota Langiott. Quando questionado, ele não respondeu às perguntas da Pública sobre a ausência de receitas atualizadas. 

“Quando eu trabalhava lá era assim: o pessoal já explicava pro doutor os casos e ele fazia as receitas. Se faltasse algum medicamento, as coordenadoras gerais pegavam direto na farmácia do município ou a esposa do pastor, que é enfermeira-chefe na Santa Casa, podia trazer”, explicou Stefania. 

Stefania considera que as irregularidades na Maanaim continuam acontecendo porque o pastor Amarildo tem muita popularidade e poder na região. Em sua página do Facebook, há incontáveis relatos de apoio de ex-internos e familiares que agradecem a ele a recuperação alcançada na Maanaim. Além de ser diretor da entidade, Amarildo é dono de uma igreja popular na pequenina cidade de 15 mil habitantes. E outros dois funcionários da comunidade terapêutica têm cargos na prefeitura. Um dos administradores, Lucas Ferraz, é o atual Secretário de Desenvolvimento Social, e a psicóloga, filha do pastor, Rebecca Silva, trabalha na área de saúde da cidade. Em 2020, outro administrador da entidade, Marcos Vinícius Castro, está concorrendo para vereador pelo PDT. 

“Eles não têm medo de fazer o que fazem porque têm as costas quentes”, avalia Stefania. Enquanto trabalhava na entidade, a farmacêutica soube de mães que telefonavam para o pastor denunciando que os filhos haviam sofrido violência. Para ela, “Amarildo finge que não sabe o que acontece dentro das clínicas, mas ele sabe. Tudo funciona tão bem quanto uma máfia”, conclui. 

A Pública questionou o pastor Amarildo sobre as denúncias relatadas por adolescentes e familiares. “Nós estamos sendo caluniados. Eu trabalho há 30 anos aqui e eu tenho um punhado de pessoas que conhece o meu trabalho e tudo que foi falado ali é 90% mentira”, afirmou. Em relação aos episódios de violência física, o pastor afirmou que “os meninos foram induzidos pelos fiscais [da inspeção] a mentirem porque queriam ir embora”. Segundo Amarildo, “o viciado, o drogado, principalmente os meus ali, os adolescentes, mentem em tudo. São manipuladores”. 

Em entrevista, quando questionado sobre o bastão encontrado pela reportagem, Amarildo afirmou “não tem bastão, não existe bastão”. Sobre o fato de adolescentes serem colocados como monitores, vigiando outros internos, Amarildo disse que a prática é benéfica porque “você dar uma função para o adolescente faz ele se sentir valorizado”. O pastor ainda explicou que o controle na comunicação dos internos com o mundo – monitoramento de chamadas telefônicas e cartas – é necessário para evitar que os adolescentes contatem traficantes.

“Todos os casos de denúncia que eu tive aqui eu provei que não era verdade, nós zelamos por essa parte. A prova é que nós estamos há 30 anos trabalhando. Na região aqui todo mundo conhece nosso trabalho: assistente social, juiz, promotor”, concluiu o pastor.

* Os nomes dos adolescentes e de algumas fontes foram alterados para proteger a identidade e evitar represálias.

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